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Autoimagem com autocrítica no aleitamento materno. Temos?

Do BLOG da Editora Timo

Um povo sem memória é um povo sem história... E quando se trata de indústria do marketing e alimentação infantil precisamos recapitular

por Dr. Moises Chencinski - colunista

16/02/2024

Para sermos quem somos, ou quem queremos ou quem conseguimos ser, não dependemos da avaliação ou da aprovação de ninguém. Cada um de nós tem sua história e, de acordo com muitas circunstâncias, traçamos nossos caminhos.

Se nossa trajetória não nos agrada ou não nos satisfaz, é possível tentar modificar o rumo e buscar as metas. Frase atribuída ao ex-presidente Juscelino Kubitschek: “Costumo voltar atrás, sim. Não tenho compromisso com o erro”.

Mas, para isso, é fundamental que tenhamos educação básica, informações baseadas em evidências, ética, sem conflito de interesses.

E para além disso... dicionário?

AUTOCRÍTICA
“Crítica que o indivíduo faz de si mesmo, reconhecendo as qualidades e defeitos do próprio caráter e avaliando os erros e acertos de suas ações. Capacidade de autoavaliação”.

AUTOIMAGEM
“Concepção pessoal que um indivíduo tem de si mesmo, da qual deriva a consciência de sua identidade, de seu papel social e de seu valor”.

Um estudo na França aponta que a maioria dos bebês na França é alimentada com fórmulas infantis seguidas por alimentos complementares industriais, grande parte ultraprocessados. Esses resultados foram atingidos, segundo esse estudo, com grande participação da indústria moldando a ciência sobre nutrição infantil, como especialistas em temas na área, com relações de longa data com profissionais de saúde (qualquer semelhança com fatos brasileiros e mundiais...).

O mercado de alimentos infantis na França em 2.020 foi avaliado em 1,25 milhões de euros sendo metade em “substitutos” de leite materno e a outra metade em alimentos complementares comerciais secos e outros preparados (por exemplo, cereais infantis, purê de frutas e biscoitos) – todos ultraprocessados.

Dados de pesquisa, na França, indicam que só 74% dos recém-nascidos (RN) foram amamentados exclusivamente desde o primeiro dia de vida (o ENANI mostra que no Brasil 62,4% foram amamentados na 1ª hora de vida e na alta da maternidade chegamos a 75,1%); com 1 mês 54% (ENANI-2019: 73,1%) e, aos 4 meses, esse número chega a 33% (ENANI-2019: 26%).

E na França, o marketing (sempre o marketing) promove e “normaliza” o conflito de interesses.

Henri Nestlé abre uma agência de vendas de farinha láctea como alimento completo para bebês (1.868). O médico Isaac Carasso funda a Danone em 1919, que se funde com a Blendina (“Blédine Jacquemaire, a segunda mãe”) e forma o Grupo Danone. 

Henri Nestlé foi pioneiro na estratégia de “marketing médico” da indústria, com o fortalecimento de laços e endosso de autoridades científicas e cientistas proeminentes, com compromissos com professores de química e médicos em universidades francesas, gerando um número crescente de pesquisas publicadas em revistas especializadas que, segundo a própria empresa, contribuíram muito para a promoção de seu produto na profissão médica.

Já a Danone, inclui a distribuição de folhetos promocionais em maternidades e, por volta de 1.950, expandem relações comerciais com profissionais de saúde com a Nutricia, divisão de “nutrição especializada” da empresa, contratando nutricionistas para fornecer informações sobre seus produtos aos profissionais de saúde.

Um grande aumento no consumo de produtos alimentares para bebês aconteceu na França, passando de 2.200 para 34.000 toneladas, entre 1.962 e 1.973.

Na década de 1.990, a indústria de alimentação infantil começou a organizar eventos científicos e a produzir informação científica na França e, em 1.991, foi fundado o Instituto Danone com a proposta de engajar profissionais de saúde por meio de atividades educativas, inclusive por meio da publicação de uma revista.


Que absurdo isso, não é mesmo? Mas essa França...

Na nossa história do aleitamento materno no Brasil, me parece que, muitas vezes, carecemos de autocrítica, o que reflete diretamente em nossa autoimagem.

Pesquisa recente, publicada no Globalization and Health (acesso livre; recomendo fortemente a leitura completa), traz um panorama muito provocativo, em um estudo de caso sobre a influência do mercado e das práticas políticas da indústria na amamentação e alimentação infantil no Brasil.

A equipe internacional de pesquisadores (Colômbia, Irlanda, Brasil – representantes do IDEC, NUPENS, IMS e Austrália) traz uma análise histórica, econômica, política, social, cultural sobre a interface amamentação / ação da indústria e seu marketing bastante relevante, com foco no “sistema de primeira alimentação” dos bebês.


“Um povo sem memória é um povo sem história...

E um povo sem história está fadado a cometer, no presente e no futuro, os mesmos erros do passado" (frase atribuída à historiadora brasileira Emília Viotti da Costa). E parece que não estamos nos lembrando disso.

O documento traz uma linha do tempo que quero compartilhar com vocês, dividida em três principais períodos (para “refrescar” a memória). Do texto:

Década de 1940-1980 - período de declínio da amamentação: Em 1940, 96,0% dos bebês brasileiros eram amamentados exclusivamente com um mês de idade. Em 1974, esse número era de apenas 39,2%. A duração média da amamentação atingiu seu ponto mais baixo de apenas 2,5 meses em 1974-75. Os fatores que explicam essa transição provavelmente incluíram o crescimento da renda, a urbanização, o aumento do trabalho das mulheres fora de casa, o uso crescente de chupetas, o aumento da medicalização da gravidez e do parto e práticas de marketing mais intensivas da indústria de alimentos para bebês.

Década de 1980 a meados da década de 2000 - o ressurgimento da amamentação: A duração média da amamentação aumentou de 2,5 para 6,8 meses em 1986, 9,9 meses em 1999 e 14 meses em 2006-7. Entre 1986 e 2006, a prevalência do aleitamento materno exclusivo antes dos seis meses aumentou de 2,9 para 37,1%; e amamentação continuada com um ano de idade (12–14 meses) de 25,5 para 47,2%. Este período coincidiu com o fortalecimento do compromisso político para respostas políticas e programáticas para promover a amamentação a nível internacional e no Brasil, incluindo avanços significativos nas proteções legais. Isso incluiu a adoção da NBCAL e a inclusão na Constituição brasileira do direito de todas as mulheres a 120 dias de licença maternidade.

Meados da década de 2000 em diante – as taxas de amamentação estabilizam e as vendas de CMF aumentam: entre 2006 e 2013, o crescimento da prevalência da amamentação exclusiva até aos seis meses estabilizou e depois regrediu ligeiramente para 36,6%; e amamentação em um ano para 45,4%. Apesar das respostas políticas e proteções legais mencionadas acima, as vendas de CMF (Commercial Milk Formula = Fórmulas de Leite Comercial) aumentaram 750,0% entre 2006 e 2020, de R$ 278 milhões (US$ 62 milhões) para R$ 2.367 milhões (US$ 525 milhões). Em 2020, as categorias de leite padrão, de acompanhamento e de leite infantil geraram R$ 838 milhões (US$ 186 milhões), R$ 512 milhões (US$ 114 milhões) e R$ 710 milhões (US$ 158 milhões) em vendas respectivamente, crescendo entre sete e oito vezes no período. A categoria de fórmulas especializadas cresceu 23 vezes no mesmo período, passando de R$ 13,6 milhões para R$ 307 milhões.

Os que sabiam puderam recordar e os que não conheciam podem começar a entender o panorama brasileiro. Números impressionantes que podem ajudar a esclarecer os resultados do Relatório 4 do ENANI-2019 (aguardamos ansiosamente o próximo ENANI).

Em um desses dias, enquanto tomava meu café da manhã, o “destino” escreveu o final desse texto. Ouvi Wilson Simonal cantando um tributo gravado em 28 de fevereiro de 1.967 (composição Ronaldo Bôscoli e Simonal).

“Sim, sou negro de cor
Meu irmão de minha cor
O que te peço é luta sim
Luta mais
Que a luta está no fim...

Um ano depois (04/04/1968), morria Martin Luther King, assassinado por um tiro.

Questões de raça, de gênero, religiosas, infanticídio, feminicídio, assédio e violência sexual, xenofobia, etarismo, machismo, a força da grana que ergue e destrói coisas belas, o marketing da indústria, ... essa lista não acaba e a cada dia é renovada e reforçada.

A luta nunca está no fim.

Dr. Moises Chencinski - CRM-SP 36.349 - PEDIATRIA - RQE Nº 37546 / HOMEOPATIA - RQE Nº 37545