Da Revista Apartes (publicação da Câmara Municipal de São Paulo)
São Paulo precisou de leis para garantir respeito pelo alimento mais antigo e natural da humanidade
por Fausto Salvador Filho
18/08/2015
Gute Garbelotto/CMSP
LEGADO – Geovana e a filha, Sofia,
inspiraram lei que protege amamentação
Como muitas crianças, Sofia, 3 anos, tem um álbum de capa cor-de-rosa com fotos dos seus primeiros anos de vida. Com uma diferença. No álbum de Sofia, as suas imagens de bebê se misturam com recortes de jornais em que a menina aparece no colo da sua mãe, a artesã Geovana Cleres, 37 anos, em notícias que falam de direitos, lutas e protestos.
“Fiz um pequeno dossiê com as notícias em que aparecemos para mostrar à Sofia quando ela for mais velha”, conta Geovana. A menina ainda é muito nova para entender tudo o que aconteceu à sua volta e por que ela e a mãe viraram assunto do noticiário e inspiraram a criação de uma lei na cidade de São Paulo.
Pois é, Sofia. Algumas coisas são mesmo difíceis de entender. Até para a gente que é grande. Imagine você que tudo começou porque a funcionária de um lugar chamado Sesc Belenzinho não quis deixar sua mãe lhe dar de mamar na frente de outras pessoas. Você não deve se lembrar. Foi em 13 de novembro de 2013, e você tinha só um ano de idade.
A funcionária disse que sua mãe deveria sair do espaço para brincadeiras do Sesc, onde vocês estavam, e se esconder num lugarzinho apertado chamado “sala de amamentação”, longe das vistas de todo mundo, como se estivesse fazendo uma coisa feia. Nem a funcionária soube dizer o motivo da proibição. Primeiro, falou que era porque outras crianças podiam ver os seios da sua mãe e ficar com vontade de mamar também. Depois, disse que o problema estava nos adultos. Gente grande já teria reclamado porque se sentia constrangida ao ver seios de mamães amamentando os filhos por aí.
Fabio Guinalz
MAMAÇO – Mães protestam no Sesc
Belenzinho, em novembro de 2013
Seios, Sofia, são aquelas duas bolsas cheias de leite onde as mães matam a fome da gente quando somos pequenos. Sua mãe tem e um dia você também terá iguaizinhos a ela. A funcionária que a proibiu de mamar também tinha um par de seios. Metade da humanidade tem. Mesmo assim, tem algo nos seios que incomoda algumas pessoas. Sua mãe foi vítima desse incômodo naquele dia. Ao chegar em casa, ela resolveu desabafar. Escreveu um texto num lugar cheio de discussões e vídeos de gatinhos chamado Facebook.
O desabafo da sua mãe ganhou o apoio de muita gente legal, mas também chamou a atenção de pessoas não tão bacanas, inclusive outras mamães. “Meu post recebeu algumas respostas extremamente machistas. Uma mulher, por exemplo, me disse que ela não queria que o marido dela visse outras mulheres amamentando por aí”, diz Geovana. Nem tente entender, Sofia. Nem tente.
Mas essa história tem um final feliz, como aqueles contos dos livros. E nem precisou de príncipe ou fada. Geovana e outras mamães é que foram as princesas e fadas madrinhas dos seus enredos e, quatro dias depois, organizaram um protesto no Sesc Belenzinho (protesto, Sofia, é como quando a gente chora pedindo alguma coisa. Tem vez que somos atendidos, tem vez que não). O protesto foi em forma de mamaço, com dezenas de mamães alimentando seus filhos na frente dos funcionários do Sesc. Que, dessa vez, não proibiram ninguém e ainda apoiaram o ato.
Tiago Figueiredo
LIVRE – Fabíola amamenta o filho Igor no
Minhocão, em foto para o Projeto Loove
É aí que entram na história os vereadores Aurélio Nomura, Patrícia Bezerra (ambos do PSDB) e Edir Sales (PSD). Vereadores, Sofia, são pessoas que, entre outras funções, podem propor regras dizendo o que as pessoas podem ou não fazer, mais ou menos como seus pais fazem quando dizem que você só pode rabiscar naquela parede ao lado do seu quarto, mas não nas outras do apartamento. As regras que os vereadores criam são chamadas de leis. Pois esses três vereadores criaram um projeto que virou a Lei 16.161, sancionada em 13 de abril deste ano.
A lei diz que toda mamãe tem o direito de dar de mamar em qualquer estabelecimento da cidade, e ainda prevê um castigo, como as mães fazem com os filhos levados. O estabelecimento que impedir alguém de amamentar pode ser punido com multa de R$ 500, que dobra de valor em caso de reincidência. “Constranger o ato de amamentar é inadmissível. Não existe nada mais natural que uma mãe amamentar seu filho”, disse Nomura, na época da sanção. Coautora da lei, Edir Sales afirma que a legislação não veio para multar, mas para informar: “O mais importante é a conscientização desses estabelecimentos e das mães, para que saibam que podem amamentar em qualquer lugar”, aponta.
A outra autora, Patrícia Bezerra, mamãe de duas adolescentes, contou que, uma vez, um garçom a impediu de amamentar sua primeira filha num restaurante. “Naquela época, como mãe de primeira viagem, inexperiente e imatura, acatei o que o garçom disse sem questionar ou perceber que amamentar onde quisesse era um direito meu e da minha filha. Se fosse hoje, não aconteceria novamente”, diz a vereadora.
Engraçado pensar que, num país feito o Brasil, os mesmos seios que provocam caretas quando alimentam bebês em público são festejados e rendem grana quando exibidos para homens crescidinhos no carnaval ou em filmes que as crianças não podem ver. “Isso mostra o quanto nossa sociedade é machista e só admite a nudez feminina se for a serviço do prazer masculino”, lembra a geógrafa Fabíola Tibério Nunes, 36 anos. Ela é quem aparece amamentando o filho Igor na foto acima, feita para o Projeto Loove, da jornalista Catarina Beato e do fotógrafo Tiago Figueiredo, que procura fotografar mulheres dando de mamar em lugares públicos para lembrar a todo mundo como isso é natural.
Mozart Gomes/CMSP
META – Edir diz que objetivo da
lei é conscientizar
Essa conversa deve parecer estranha para você, Sofia, que já nasceu sabendo a delícia e a saúde que é mamar. Mas gente grande gosta de complicar as coisas e andou, muitas vezes, afastando a maternidade de tudo o que é natural. Pegamos mania de mandar mamães para hospitais, como se estivessem doentes, cortar a barriga delas na hora do parto, trancar os bebês em berçários e ainda inventamos um monte de traquitanas, como leite em pó, chupetas e mamadeiras, para fazer o bebê largar do peito o quanto antes, convencendo as mulheres de que o corpo que gera a criança não é capaz de pari-la e nem de alimentá-la.
Durante anos, essas ideias tiveram apoio da classe médica. Médicos, Sofia, são outras pessoas que também criam regras dizendo o que a gente pode ou não fazer, mais ou menos como os vereadores, só que vestem roupa branca e suas leis vêm em forma de receitas. Veja o que diz um desses homens de branco, o pediatra Moisés Chencinski, membro do Departamento de Aleitamento Materno da Sociedade de Pediatria de São Paulo e criador de uma campanha chamada #euapoioleitematerno. “Quando saí da faculdade, buscava-se tirar o bebê do seio materno o mais rápido possível: com um mês introduzia-se o suco e aos quatro meses a criança já estava almoçando e jantando”, afirma. Com isso, segundo ele, observou-se um aumento em várias doenças, como obesidade infantil e diabete.
Foi por volta dos anos 90 que médicos e mamães redescobriram o alimento que vem do corpo. “Hoje se sabe que o leite materno tem a proporção e quantidade certas de nutrientes necessários para a criança em cada fase do seu desenvolvimento”, explica Chencinski.
Ricardo Rocha/CMSP
PRECONCEITO – A vereadora
Patrícia também foi impedida
de amamentar
Os pediatras chamam esse leite de “alimento vivo”, por sua capacidade de se transformar. No começo da mamada, é rico em proteínas e sais minerais, e no final contém mais gordura, para deixar o bebê satisfeito e com energia. Como se cada mamada fosse uma refeição completa, com prato principal e sobremesa num alimento só. Além de vivo, carrega vida: o leite materno é a casa de vários micro-organismos que protegem contra doenças. Nenhum leite processado pelo homem chega perto de tanta riqueza, e, mesmo que conseguisse, tem algo que nunca poderia substituir: o carinho transmitido pelas mamães ao dar de mamar. Leite materno é comida, sobremesa e vacina, é beijo e é abraço, tudo num líquido só.
Agora um pouco de números, Sofia. Dados do Ministério da Saúde divulgados em 2009 mostram que as mamães do Brasil passaram a amamentar mais nos últimos dez anos, mas o País ainda está longe de cumprir as metas da Organização Mundial de Saúde (OMS), que falam em pelo menos dois anos de aleitamento, sendo que nos primeiros seis meses o bebê não pode se alimentar de outra coisa (veja na pág. 28). Dar apenas o peito é hábito que a maioria das mães brasileiras só consegue fazer por menos de dois meses: em geral, 54 dias. Combinada com outros alimentos, a amamentação costuma parar antes de a criança completar um ano, com 341 dias.
Chencinski afirma que a sociedade brasileira põe um monte de problemas para as mamães que querem amamentar, da licença-maternidade que só é obrigatória por quatro meses à falta de apoio que recebem da família, do governo e das empresas – sem falar do povo que acha feio dar de mamar em público. “Com tantas coisas contra, a mãe que consegue amamentar acaba sendo vista como uma heroína”, diz. Sobre a Lei 16.161, o médico achou bom e ruim ao mesmo tempo. “É uma pena precisar de uma lei para que a mãe possa amamentar em qualquer lugar. Por outro lado, já que é necessário, é bom que exista”, diz.
E sua mãe, Sofia, o que achou disso tudo? Geovana diz que essa história é um presente que ela vai deixar para você. “Esse é o legado mais importante que deixo para minha filha. Mostrar para ela que devemos lutar para reivindicar nossos direitos.”
Ricardo Rocha/CMSP
CARINHO – Irene alimenta a filha Sofia em
UTI de Ermelino Matarazzo
Quando nasceu o primeiro rebento da atendente Irene Souza dos Santos, 28 anos, não era o momento dele rebentar. Sofia nasceu prematura, com 28 semanas. Pesava 1,2 quilo e cabia na palma da mão. Nem o corpo de Irene tinha leite para amamentá-la, nem Sofia estava pronta para engolir o alimento. Internada na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) neonatal do Hospital Público Municipal Alípio Correa Netto, em Ermelino Matarazzo, na zona leste, Sofia passou os primeiros dias sendo alimentada, via sonda, pelo leite de outras mães. O alimento era recolhido, analisado e pasteurizado no banco de leite da maternidade local.
A pediatra Telma Aparecida Farahte Giangiardi, responsável pelo banco de leite do hospital, diz que o alimento doado pelas mães é entregue aos bebês das UTIs, a maioria prematura. O banco também ajuda a aumentar a produção do alimento, graças a um ambulatório que dá apoio às mães, inclusive com a participação de uma psicóloga, para ajudá-las a produzir mais leite. Foi o que aconteceu com Irene, que, após algumas semanas, passou a doar o próprio leite para alimentar Sofia. “Foi muito gratificante, porque quem é mãe quer amamentar”, conta. Irene disse que, mesmo após levar Sofia para casa, pretende continuar a doar ao hospital: “Como minha filha mamou de outras pessoas, vai ser um prazer ajudar crianças que precisam. Toda mãe devia fazer isso”.
Devia mesmo (veja como doar na pág. 29). Embora a Rede Brasileira de Bancos de Leite Humano, criada pelo Ministério da Saúde e pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), seja considerada a maior e mais complexa do mundo, capaz de distribuir a cada ano 160 mil litros pasteurizados para 175 mil bebês, ainda é pouco. A rede brasileira só dá conta de 60% das necessidades dos recém-nascidos internados. “Alguns bebês têm que receber o leite artificial, que aumenta em muito o risco de infecção do berçário. O leite que salva vidas é o materno”, afirma José Carlos Riechelmann, diretor do Departamento de Gestão de Assistência da Autarquia Hospitalar Municipal, responsável pela administração dos hospitais municipais.
A Lei 13.296/2002, do vereador Toninho Paiva (PR), ajudou a ampliar a rede na cidade, ao obrigar o Executivo a implantar um banco de leite em todas as maternidades municipais. “Essa lei teve um impacto muito positivo”, afirma Riechelmann. Hoje, todas as maternidades têm alguma estrutura para a coleta de leite, que tanto pode ser uma sala de ordenha (para a mãe doar apenas ao próprio filho), um posto de coleta (que congela o alimento) ou um banco de leite no sentido estrito (que faz tudo isso e ainda pasteuriza o leite doado). “Eu me orgulho muito de ter ajudado, com essa lei, a alimentar crianças que, de outro jeito, poderiam nem vingar”, afirma Paiva.
Dr. Moises Chencinski - CRM-SP 36.349 - PEDIATRIA - RQE Nº 37546 / HOMEOPATIA - RQE Nº 37545