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Durma-se com um barulho desses!

do Portal SEGS

Você acredita em todas as dicas e vídeos para tomar conta do seu bebê que circulam pela web? Muito cuidado! Método propagado pela internet pode interferir gravemente na audição dos bebês!

por Marcia Wirth

19/06/2016

O sono das crianças (ou a falta dele) é um dos problemas mais comuns já há algum tempo nas famílias modernas, e está se transformando numa das queixas mais frequentes nas consultas pediátricas. Pais que trabalham fora ou em casa, berçários, babás, avós, cama compartilhada, TVs, internet, falta de rotina são alguns dos fatores do mundo moderno que costumam interferir na dinâmica das famílias.

Uma noite mal dormida interfere no humor, na disposição, na iniciativa. Imaginem se essas noites se repetem, e se repetem, e continuam a se repetir por dias, semanas, meses e até anos. Não é à toa que os pais aceitam ouvir palpites e propostas, até as mais absurdas, até as mais inusitadas, para que consigam pelo menos uma noite de sono calmo, ininterrupto, repousante... Um sonho.

“Entre esses métodos “recomendados”, um deles me chamou demais a atenção por ter sido divulgado até em um famoso programa de final de domingo, em uma emissora de TV com bastante visibilidade e por ter sido apresentado por um pediatra (Dr. Harvey Karp). Algumas entrevistas foram feitas com profissionais na época, a maioria contrária e esses métodos, por generalizar, por não levar em conta cada caso individualmente, entre outras razões”, afirma o o pediatra e homeopata Moises Chencinski (CRM-SP 36.349).

A primeira informação dada no vídeo pelo pediatra era que “se você acha que bebês estão chorando por cólicas, vocês estão enganados. Eles choram porque não sabemos dar a eles o que eles querem”. E a matéria continua perguntando: “E o que os bebês querem?”. Segundo Harvey Karp: “que eles sigam seu método”.

A primeira parte do método é “enrolar o bebê, empacotando-o com o cobertor, como se fosse um embrulho para presente mesmo”. Dr. Karp explica que ele “pode até resistir, mas logo, logo acaba aceitando e dormindo.” Mas isso nem sempre resolve e aí vem o segundo passo: “virar o bebê de lado e o choro para na mesma hora” (pelo menos na matéria).

“E aí vem a parte mais tensa e intensa. Se ainda assim não resolver, o médico recomenda fazer um “chiado forte no ouvido dele”. Um shhhhhh que já foi muito difundido por aqui e ainda é muito utilizado. O que mais me preocupou foi o nível do ruído, diretamente na orelha de um bebê, que tem suas estruturas nervosas finas, ainda em formação. Assim, para que não pairasse qualquer dúvida, pedi a uma empresa a realização de uma avaliação de nível de ruído – decibelimetria (18/02/2016)”, diz o pediatra.

Foram realizados dois procedimentos (segue parte do laudo técnico)

a) Primeiramente medimos o ruído diretamente do vídeo em exibição no “You Tube”. Para isso, regulamos o volume dos autofalantes de tal forma que a locução do apresentador do programa variasse entre 30,5 dB(A) (Pausas) e 68,1 dB(A), que consideramos como níveis normais de conversação. Considerando este nível como referencial, medimos o ruído feito pelo médico junto ao ouvido do bebê;

b) Solicitamos a 6 pessoas, três homens e três mulheres, que assistissem ao vídeo e, em seguida, foi solicitado a cada um deles que fizesse um ruído similar ao ouvido no vídeo. O nível destes ruídos foi medido por um medidor integrador (dosímetro de ruído) e foram estabelecidos o valor médio e o máximo.

E os resultados?

No primeiro procedimento (a), o nível da voz do locutor [dB(A)] em dois momentos do vídeo foram de 30,5 e 68,1. O nível do ruído produzido pelo médico [dB(A)], nesses dois momentos, foi de 61,9 a 85,1.

Observação: O volume do som do vídeo foi regulado para que a voz do locutor estivesse num nível de ruído de uma conversação normal e servisse como parâmetro de referência.

Já no segundo procedimento (b), quando foram testados 3 homens e 3 mulheres após assistirem ao vídeo, o nível médio equivalente [dB(A)] foi de 92,0 e o nível máximo atingido [dB(A)] foi de 104,6.

Observação: Medição feita com seis voluntários, três de cada sexo, que assistiram ao vídeo e procuraram repetir o ruído produzido pelo médico, no ouvido do bebê.

Considerações técnicas

De acordo com a Organização Mundial de Saúde, um nível de 70 dB já é desagradável para o ouvido humano e acima de 85 pode danificar o sistema auditivo, considerando-se pessoas adultas.

“Não há parâmetros estabelecidos para recém-nascidos. Embora o tempo de exposição contínua não seja elevado, o processo poderá ser repetido várias vezes ao dia (sempre que o bebê chorar) e o valor de 92 dB é bastante alto e seria importante verificar quais consequências ele pode trazer para o sistema auditivo e neurológico do bebê”, alerta Moises Chencinski.

Segundo o pediatra, por outro lado, devemos levar em consideração que pessoas não treinadas, apenas orientadas pelo vídeo, poderão reproduzir o ruído em valores até superiores aos obtidos nas medições expostas acima. O laudo pode ser analisado na íntegra no pdf anexo.

“Deve-se sim evitar este tipo de procedimentos com os bebês, pois o som é realmente alto. A perda auditiva induzida por ruído geralmente ocorre para as frequências agudas. Entretanto, para se afirmar que há ou pode haver lesão do ouvido, deve-se respeitar o tempo de exposição ao som”, afirma o médico, que é membro do Departamento de Pediatria Ambulatorial e Cuidados Primários da Sociedade de Pediatria de São Paulo.

Para 85 dB, o permitido refere-se a uma exposição de 8 horas diárias. Para 91 dB 3 horas e meia e para 104 dB 35 minutos pois trata-se de uma escala logarítmica, segundo a NR 15 do Ministério do Trabalho e Previdência Social - Atividades e operações insalubres - ANEXO Nº 1 – que trata de LIMITES DE TOLERÂNCIA PARA RUÍDO CONTÍNUO OU INTERMITENTE.

“As consequências podem depender do tempo que a criança demora para adormecer. Sempre que há exposição e um repouso de pelo menos 30 minutos o ouvido tende a se recuperar. A lesão auditiva é pior para os sons agudos, pois estes são mais facilmente transmitidos pelo sistema timpânico-ossicular. Não há trabalhos específicos sobre perda auditiva por ruído em bebês. O ruído lesivo é contínuo. Se houver intervalos de repouso auditivo, é melhor e geralmente não lesivo. Mas não se sabe se em bebês isso pode trazer problemas a longo prazo”, diz o pediatra.

Porém, no Anexo Nº 1 da NR-15, há uma observação a se considerar:

6. Se durante a jornada de trabalho ocorrerem dois ou mais períodos de exposição a ruído de diferentes níveis, devem ser considerados os seus efeitos combinados, de forma que, se a soma das seguintes frações: C1/T1 + C2/T2 + C3/T3 ____________________ + Cn / Tn exceder a unidade, a exposição estará acima do limite de tolerância. Na equação acima, Cn indica o tempo total que o trabalhador fica exposto a um nível de ruído específico, e Tn indica a máxima exposição diária permissível a este nível, segundo o Quadro deste Anexo.

Isso aponta para a possibilidade de que a somatória de shhhh durante o dia na orelhinha do bebê pode ser mais prejudicial ainda.

Que lição tiramos desse experimento?

Assim, apesar de entender a ansiedade e a angústia dos pais por não dormirem e por perceberem seus filhos em sofrimento, é fundamental que haja um embasamento científico e uma avaliação técnica dos métodos. “A divulgação de qualquer tipo de conduta sem o cuidado adequado pode até prejudicar o desenvolvimento do bebê levando, em situações como essa, até a uma perda auditiva significativa, dependendo da intensidade do som e do tempo de exposição contínua. Conversem sempre com o pediatra. Cada caso será analisado individualmente, e as medidas adequadas poderão ser tomadas para tentar solucionar o problema”, recomenda Moises Chencinski.

Referências:

· VERRI, G. (1999). A gestante exposta ao ruído: Efeitos auditivos para o feto.Porto Alegre: Centro de Especialização em Fonoaudiologia Clínica.

· Rocha, E. B., Azevedo, M. F. D., & Ximenes Filho, J. A. (2007). Estudo da audição de crianças de gestantes expostas ao ruído ocupacional: avaliação por emissões otoacústicas-produto de distorção. Revista Brasileira de Otorrinolaringologia, 73(3), 359-369.

· Levey, S., Fligor, B. J., Ginocchi, C., & Kagimbi, L. (2012). The effects of noise-induced hearing loss on children and young adults. CICSD, 39(1), 76-83.

Dr. Moises Chencinski - CRM-SP 36.349 - PEDIATRIA - RQE Nº 37546 / HOMEOPATIA - RQE Nº 37545