Do portal da APCD
Protocolo de Avaliação do Frênulo da Língua em Bebês deve ser aplicado por uma equipe multidisciplinar a fim de evitar diagnósticos imprecisos
por Mariana Pantano
20/06/2017
A anquiloglossia, usualmente chamada de “língua presa” é uma anomalia congênita que ocorre quando uma pequena porção de tecido embrionário, que deveria ter sofrido apoptose durante o desenvolvimento, permanece na face ventral da língua (Knox, 2010). É caracterizada por um frênulo lingual anormalmente curto e espesso/delgado, que pode restringir em diferentes graus os movimentos da língua, dependendo de sua espessura, elasticidade e o local de fixação superior e inferior do frênulo na língua e cavidade oral, que podem variar amplamente entre os sujeitos, sendo que o diagnóstico varia em diferentes graus, e é classificada em leve, moderada ou severa, de acordo com a explicação da fonoaudióloga, Maria Teresa Cera Sanches, com experiência hospitalar, desde 1991, em “Iniciativa Hospital Amigo da Criança” e “Método Canguru”, sendo assessora do Ministério da Saúde nessa área; mestrado em Saúde da Mulher e da Criança e doutorado em Epidemiologia pela Faculdade de Saúde Pública da USP; e pesquisadora do Instituto de Saúde da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo e capacitadora oficial dos cursos de “ Manejo clínico” e “Aconselhamento em Amamentação” e “Método Canguru” para profissionais de saúde do SUS.
Em junho de 2014, foi sancionada a lei federal nº 13.002, que obriga a realização do Protocolo de Avaliação do Frênulo da Língua em Bebês, popularmente conhecido como Teste da Linguinha - em todos os hospitais e maternidades brasileiros, nas crianças nascidas em suas dependências. Segundo o autor da norma, o deputado federal Onofre Agostini (PSD-SC), com a aplicação desse protocolo é possível identificar se o frênulo lingual limita os movimentos da língua, que são importantes para sugar, mastigar, engolir e falar, e essa aplicação deve ser realizada preferencialmente antes do primeiro mês de vida para evitar dificuldades na amamentação, possível perda de peso e, principalmente, o desmame precoce.
Este protocolo é dividido em história clínica, avaliação anatomo-funcional e avaliação da sucção não nutritiva e nutritiva. Além de ter pontuações independentes e pode ser aplicado por partes, até o sexto mês de vida.
O presidente do Departamento Científico de Aleitamento Materno da Sociedade de Pediatria de São Paulo (DCAM-SBP), Yechiel Moises Chencinski, ressalta que o fonoaudiólogo, pediatra, otorrinolaringologista, o Cirurgião-Dentista e cirurgião infantil poderiam fazer esse teste. “Normalmente, na rotina, ele é executado pelo pediatra e pelo fonoaudiólogo. De qualquer forma, o diagnóstico deve ser feito por uma equipe multidisciplinar, com exceção dos casos clássicos. Em se tratando do aleitamento materno, que é natural, mas muito complexo, um único teste, por meio de apenas um profissional, pode trazer diagnósticos imprecisos, quando baseado apenas em escores”.
Chencinski alerta que, apesar de ser uma ação importantíssima, a lei foi publicada sem uma consulta prévia a órgãos fundamentais na avaliação dos critérios de validade e aplicabilidade. “As manifestações posteriores relacionadas ao protocolo foram desconsideradas, mesmo sendo praticamente uníssonas em suas colocações.
O Departamento de Nenoatologia da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), o Departamento de Otorrinaloringologia da SBP (2013) em documento elaborado pela Presidência da Sociedade de Pediatria de São Paulo em conjunto aos Departamentos Científicos de Aleitamento Materno, Neonatologia e Otorrinolaringologia e Grupo de Trabalho Saúde Oral da SPSP (2014) declaram não terem sido consultados e ambos concluem que o protocolo não é recomendado pois, além de desnecessário, pela baixíssima frequência dos casos, pelo reduzidíssimo risco envolvido e pela ausência de dificuldades no diagnóstico, a lei deveria ser revogada.
A presidente da Associação Paulista de Odontopediatria e diretora do departamento de Prevenção e Promoção da Saúde da APCD, Helenice Biancalana, também expõe que a Associação Brasileira de Odontopediatria realizou um estudo para elaborar um Parecer Técnico-Científico ponderando os aspectos de maior relevância: prevalência baixa da condição a ser diagnosticada pelo protocolo; incerteza sobre os efeitos da anquiloglossia na amamentação; falta de validação adequada do método de triagem proposto; incerteza sobre os benefícios do programa obrigatório de rastreamento para anquiloglossia; dificuldade de realização do teste; custos envolvidos para a realização do protocolo; evidência de benefício da cirurgia baseada em evidência científica de baixa qualidade. “E diante desses estudos se posiciona, com o apoio da Associação Paulista de Odontopediatria, contrária à obrigatoriedade de aplicação do ‘Protocolo de Avaliação do Frênulo da Língua em Bebês’ na triagem neonatal e, no atual estágio de conhecimento científico sobre o tema, considera prudente restringir a avaliação da possível interferência do freio lingual na amamentação aos casos individuais em que seja constatada dificuldade de amamentação nas primeiras semanas de vida, já fora da maternidade. Em caso de evidência de que a anquiloglossia seja a causa da dificuldade de amamentação, a indicação da cirurgia de frenotomia pode ser considerada”.
O presidente da Associação Brasileira de Odontopediatria (ABO), José Carlos Pettorossi Imparato, diz que é importante deixar uma porta aberta com todas associações, "busco um consenso entre as instituições - o que seria o melhor para todos, e, dessa forma, o ideal é conduzirmos uma pesquisa juntos."
O leite materno é o alimento mais adequado para todo e qualquer recém-nascido e a amamentação é extremamente importante para a saúde do bebê. Nos seis primeiros meses de vida, o leite materno deve ser fonte exclusiva de nutrição. “Para que a função de sucção ocorra de maneira natural, o recém-nascido deve apresentar coordenação dos reflexos orais, vedamento labial e adequada movimentação e protrusão da língua, para obtenção do leite. A habilidade de distensão da língua é fundamental durante a extração do leite dos ductos mamilares, bem como, os movimentos da mandíbula, o ritmo de sucção, as pausas alternadas e a coordenação entre movimentos de sucção, deglutição e respiração. Todos estes mecanismos são importantes para o sucesso da amamentação. A literatura aponta que as funções de sucção e deglutição dependem do correto funcionamento da língua”, explica Helenice Biancalana.
A assessora da presidência da Associação Brasileira de Odontopediatria - ABO, Sylvia Lavinia Ferreira, diz que a alteração do freio, em casos bem específicos e bem diagnosticados, pode interferir na amamentação, porém há outros fatores que também interferem no aleitamento materno e devem ser considerados. “Os estudos não têm sido conclusivos a este respeito e há muita controvérsia quanto aos resultados apresentados”.
Helenice complementa que percebe-se que a anquiloglossia pode influenciar a prática do aleitamento materno em recém-nascidos a termo e sadios. Entretanto, assevera-se que a relação é fundamentada em poucos estudos observacionais controlados e que estes apresentam alguns problemas metodológicos como, por exemplo, amostras pequenas, seguimento curto, falta de padronização dos procedimentos diagnósticos e também no protocolo de avaliação da mamada. “Existe a hipótese de que a anquiloglossia interfere na pega do mamilo materno pelo bebê e leve, portanto, há dificuldade de amamentar. Entretanto, a maioria das crianças diagnosticada com língua presa é assintomática e não apresenta dificuldades de amamentação. Além disso, existe grande incerteza a respeito dos benefícios da correção cirúrgica da anquiloglossia com relação a desfechos clinicamente relevantes como: prevenção da interrupção precoce da amamentação, aumento da duração da amamentação e crescimento e ganho de peso da criança.
Já, para responder a pergunta se a anquiloglossia interfere na amamentação, Maria Teresa Cera Sanches pondera que é necessário analisar-se estudos com adequada metodologia, prioritariamente os observacionais controlados, que avaliem a relação entre anquiloglossia, problemas na amamentação e ganho de peso em recém-nascidos e lactentes. “Ainda hoje, os estudos são escassos e a grande maioria com problemas sérios metodológicos, além de muito divergentes. Uma questão que dificulta os estudos é o diagnóstico, sendo que, até hoje, não existe um protocolo padrão-ouro, internacional, que nos permite o diagnóstico preciso e universal sobre a classificação da anquiloglossia e sua repercussão na amamentação.”
Desde 2014, com a aprovação da lei, “o Instituto de Saúde da Secretaria do Estado de São Paulo, o qual integro, presta assessoria para a Coordenação Geral de Saúde da Criança e Aleitamento Materno do Ministério da Saúde (CGSCAM-MS) e para o Comitê Nacional de Aleitamento Materno (MS) sobre esse assunto, que demandaram inicialmente, a realização de um estudo de revisão, com vistas à implementação do Teste da Linguinha no âmbito do SUS. “Desta forma, realizamos um Parecer Técnico Científico: “Anquiloglossia e aleitamento materno: evidências sobre a magnitude do problema, protocolos de avaliação, segurança e eficácia da frenotomia”, do Instituto de Saúde da SES-SP (autores: Venânico e cols., 2015), disponível no SISREBRATS/ 2015, que seguiu as orientações propostas nas Diretrizes Metodológicas para Elaboração de Pareceres Técnico-Científicos do Ministério da Saúde. Mediante a evidência disponível, constatou-se que lactentes com anquiloglossia têm menor chance de serem amamentados nas primeiras semanas de vida e eles apresentaram maior risco de ser alimentados exclusivamente na mamadeira na 1ª semana de vida, quando comparados a lactentes sem anquiloglossia. As dificuldades na amamentação (dor e dificuldade de pega) tiveram maior prevalência e persistência entre mães de bebês com anquiloglossia e houve indícios de uma relação dose-resposta entre a severidade da anomalia e diagnóstico de dificuldades na amamentação. Conclui-se, portanto, que a anquiloglossia pode influenciar a prática do aleitamento materno em recém-nascidos a termo e sadios. Vale ressaltar que os estudos apontam a importância do seguimento nas primeiras semanas para os recém-nascidos com anquiloglossia que apresentarem dificuldades de amamentação. É importante salientar ainda que nos estudos identificados não foram separadas variáveis que pudessem causar viés de interpretação nos casos de sucesso da amamentação, como por exemplo, em casos de mulheres com excessiva produção de leite, onde possa ter havido uma superação da dificuldade de extração de leite e ganho de peso ou ainda controle com casos de aleitamento materno exclusivo ou aleitamento misto”, detalha Maria Teresa.
A pesquisadora enfatiza que o exame anatômico do frênulo lingual em recém-nascidos e em crianças é imprescindível e deve fazer parte obrigatória da avaliação pediátrica e neonatal, odontológica, fonoaudiológica e outros profissionais que atuem com bebês. Também está prevista para profissionais de saúde que realizam o Curso de Manejo em Amamentação, no item da observação dos reflexos orais e sucção do bebê, durante a Capacitação da Observação da Mamada desde 1995, no Brasil (MS, Unicef/ IBFAN, 1992). “Então sou a favor do exame do Frênulo Lingual, que inclusive, faz parte da minha avaliação, enquanto fonoaudióloga clínica e hospitalar, entretanto, contrária ao ‘Teste da Linguinha’, da forma como foi estabelecido”. No Brasil, o Projeto de Lei nº 4.832/12 propôs a obrigatoriedade da avaliação do frênulo da língua em bebês em todos os hospitais e maternidades, inicialmente com a utilização do protocolo de Martinelli et al., 2013, sendo sancionado pela Presidência da República e convertido na Lei nº 13.002, de junho de 2014”.
Maria Teresa explica que uma das questões importantes contra o Teste da Linguinha, inicialmente, foi ter sido baseado na pesquisa brasileira de Martinelli et al., 2013. Trata-se de um estudo transversal, que apresentava um novo protocolo de avaliação do frênulo lingual para bebês, com intuito de testagem em 100 bebês com 30 dias de vida. Após a exclusão de 29 casos (devido à presença de frênulo sub-mucoso), o protocolo foi aplicado em somente 71 bebês, sem ser validado previamente, sendo diagnosticados 16 bebês com frênulo alterado, após a aplicação por uma única avaliadora e análise das filmagens apreciadas por duas fonoaudiólogas, separadamente. Desta forma, o estudo apresenta viés metodológico, devido ao próprio desenho do estudo, com número reduzido de sujeitos e por ter sido baseado em outro instrumento inicialmente proposto (2012), pelas mesmas autoras, sem ter sido um instrumento validado, apontando uma prevalência alta de alterações no frênulo 22, 54% . “Muito maior que as taxas encontradas na literatura internacional disponível!”, ressalta.
Moises Chencinski (DCAM-SBP) esclarece que apesar desses dados, a estatística de crianças com alterações de frênulo que apresentam problemas das mamadas é muito menos significativa. “Ballard et al., pesquisando a anquiloglossia e sua repercussão na amamentação, acompanharam 2.763 bebês a termo em aleitamento materno internados em uma maternidade dos Estados Unidos e 273 em seguimento ambulatorial com problemas na mamada por possíveis problemas decorrentes da anquiloglossia. Do total de pacientes avaliados apenas 3,2% de bebês internados (88) e 12,8% dos provenientes do ambulatório (35) tiveram indicação cirúrgica (123 casos - 4,1% do total). Mesmo assim, o autor faz uma ressalva sobre a limitação do estudo pelo fato de não ter um grupo de controle, sem frenectomia, que pudesse ter sido acompanhado em seguimento ambulatorial. “Além disso, nem o movimento da língua durante a sucção não nutritiva, nem o ponto de fixação do frênulo na língua, indicam, necessariamente, problemas de amamentação que necessitem qualquer correção, especialmente cirúrgica”.
Maria Teresa explica que, atualmente, por meio da Nota Técnica nº 09/2016, por considerar que a triagem na maternidade deve ter como objetivo a identificação de casos graves de anquiloglossia, para diagnóstico e intervenção precoce, o Ministério da Saúde sugere a utilização do protocolo Bristol Tongue Assessment Tool (BTAT) com escores e classificação de severidade do funcionamento da língua. Esse instrumento foi validado e desenvolvido com referência à Ferramenta de Avaliação para Hazelbaker Função Frênulo lingual (ATLFF), instrumento já utilizado em larga escala internacional, além de base em prática clínica do referido serviço, com padrão de excelência em aleitamento materno. “O protocolo (BTAT) fornece uma objetiva, clara e simples medida da severidade de anquiloglossia, para selecionar os lactentes para frenotomia e monitorizar o efeito do procedimento”.
Outro item importante apontado pela Nota Técnica, refere-se ao estabelecimento do fluxo de acompanhamento dos lactentes diagnosticados com anquiloglossia na rede de atenção à saúde da criança no âmbito do SUS, garantindo-se o seguimento dos bebês com diagnóstico de anquiloglossia. “Para os casos graves, após o procedimento cirúrgico, faz-se necessário o acompanhamento da dupla mãe-bebê por período mínimo de 15 dias, para apoio ao estabelecimento e/ou manutenção da amamentação, incluindo acompanhamento da curva de crescimento e o ganho de peso semanal e também avaliação da possibilidade de recidivas. Nos casos moderados e leves ou casos duvidosos que necessitam de um re-teste, a reavaliação deverá ser realizada precocemente após a alta hospitalar, na primeira semana de vida. Para tal, faz-se necessário estabelecer referências para atendimento aos lactentes considerando a rede de serviço disponível em cada realidade preferencialmente com equipes multidisciplinares com experiência em amamentação como, por exemplo, nos Bancos de Leite Humano, ambulatórios dos Hospitais Amigo da Criança, Hospitais de referência para Método Canguru e Centros Especializados em Reabilitação (CER). O Ministério da Saúde vem trabalhado atualmente na concretização da referência e contra-referência dessa rede de assistência, bem como na capacitação dos profissionais de saúde para diagnóstico da anquiloglossia. Resumindo, avaliar o frênulo lingual de um Recém-nascido ou lactente é importante, mas para a classificação de anquiloglossia e principalmente a tomada de decisão da indicação cirúrgica é necessário uma avaliação detalhada, com consenso da equipe interdisciplinar e principalmente com a avaliação da repercussão para a amamentação e a melhora da qualidade de vida do bebê e de sua mãe, no momento da avaliação”, avalia Maria Teresa Sanches.
Sylvia Lavinia finaliza dizendo que como odontopediatra, “sempre devemos pensar no bem-estar e saúde geral da criança e buscar o melhor para o seu desenvolvimento, permitindo que as funções básicas como sucção, respiração, mastigação e fala, sejam desenvolvidas de maneira adequada e ao seu tempo. Por isso valorizo o aspecto interdisciplinar (pediatra, odontopediatra e fonoaudióloga) na avaliação e acompanhamento destes casos, para que possamos oferecer o tratamento mais adequado ao paciente, começando pelo incentivo ao aleitamento materno”.
Dr. Moises Chencinski - CRM-SP 36.349 - PEDIATRIA - RQE Nº 37546 / HOMEOPATIA - RQE Nº 37545