Do portal Papo de Mãe - UOL
O pediatra Moises Chencinski alerta: "As vendas de leite artificial quase dobraram e a comercialização de leite em pó representa um dos riscos mais subestimados para a saúde de bebês e crianças
por Dr. Moises Chencinski - colunista
10/03/2022
Esse poderia ser o título dessa minha matéria de hoje. Mas é muito, muito mais do que isso. Esse é um artigo publicado no British Medical Journal (BMJ), assinado por Helen Clark, ex-primeira-ministra da Nova Zelândia e Tedros Adhanom Ghebreyesus, Diretor-Geral, Organização Mundial da Saúde.
Eu sou sempre considerado o cara do meio copo vazio. E isso não me incomoda. A questão é como isso é visto. Para mim, o copo estar meio vazio significa que temos muito a fazer e não podemos nos acomodar. O risco de acharmos o meio copo cheio, em uma visão mais otimista, é de isso não nos incomodar e não mais nos mover na direção de nossos objetivos.
O texto abre com uma constatação e um “mea culpa”, que já abordei em vários textos e aulas sob o título de “Onde estamos errando?”.
“Como sociedades, estamos falhando em proteger crianças e famílias da comercialização de produtos que prejudicam sua saúde e desenvolvimento. Um dos exemplos mais flagrantes disso é a promoção agressiva de fórmulas lácteas comerciais para bebês e crianças pequenas.
As táticas de marketing cínicas usadas para estimular o consumo excessivo de fórmulas lácteas desencorajam a amamentação, prejudicam a confiança das mães e exploram o instinto dos pais de fazer o melhor para seus filhos.”
Sempre que me refiro ao aleitamento materno, abordo nessa ordem de importância: PROTEGER, APOIAR E PROMOVER a amamentação (até diferente do que se usa aqui no Brasil). Estamos falhando já no início, já na proteção.
De 2006 a 2019, segundo o ENANI (Estudo Nacional de Alimentação e Nutrição Infantil), as taxas de aleitamento materno exclusivo em crianças menores de 6 meses tiveram um aumento de 8,6% em 13 anos (37,1 para 45,7%), o que animou muitos profissionais da área de saúde materno-infantil (“copo meio cheio”), enquanto as vendas de substitutos de leite materno, tiveram uma evolução de 103,4% de aumento na produção e 122% de lucro nesses mesmos 13 anos, o que não fez as indústrias pararem de tentar “transbordar os seus copos”.
“A comercialização de leite em pó representa um dos riscos mais subestimados para a saúde de bebês e crianças. Mas enquanto o aleitamento materno exclusivo para bebês de seis meses ou menos aumentou apenas marginalmente nas últimas duas décadas, as vendas de leite artificial quase dobraram. Aumentar o aleitamento materno poderia prevenir cerca de 800.000 mortes de crianças menores de cinco anos e 20.000 mortes por câncer de mama entre as mães a cada ano.”
Sempre vale lembrar. Amamentar é um direito de mães e bebês, não uma obrigação. Mas, não há como negar que o leite materno é o padrão-ouro da alimentação infantil, desde a sala de parto, exclusivo e em livre-demanda até o sexto mês, estendido até 2 anos ou mais. Assim, a luta não é contra as indústrias, ou contra os profissionais que nela trabalham ou contra o produto.
“É claro que o leite artificial tem seu lugar para mães e pais que não podem amamentar por uma série de razões, incluindo a falta de apoio dos sistemas sociais e de saúde. É o marketing do leite em pó, e não o produto em si, que atrapalha a tomada de decisões informadas e prejudica a amamentação e a saúde infantil.”
A luta é contra o marketing abusivo, imoral e com informações falsas, dessas empresas, como:
“- Produtos de fórmula com ingredientes adicionados melhoram o desenvolvimento do cérebro e a imunidade;
- produtos de fórmula são necessários após os 12 meses de idade;
- que o leite materno é inadequado para a nutrição de bebês e crianças maiores;
- essa fórmula mantém os bebês saciados por mais tempo e, portanto, os ajuda a dormir;
- que a qualidade do leite materno diminui com o tempo.
Tudo isso é falso. Eles ferem as crianças e ferem as mães.”
E, de acordo com novo estudo da OMS e UNICEF, essa estratégia de publicidade atinge desde “Baby Clubs, organizados e administrados por empresas de leite em pó, que oferecem presentes e descontos às mães... que fornecem “apoio e aconselhamento” 24 horas por dia, 7 dias por semana, para doenças, incluindo covid-19”, chegando, diretamente a “... profissionais de saúde e clínicas e hospitais ... incentivá-los a promover produtos lácteos em fórmula. Patrocínio, atividades de treinamento e presentes são usados – incluindo ofertas de dinheiro ou comissões em alguns casos – para influenciar as práticas e recomendações dos profissionais de saúde”.
Segundo os autores do artigo (e eu não poderia concordar mais e já venho dizendo isso há tempos...) “É hora de parar o marketing antiético da fórmula.”
O mundo está doente, mas não é só pela pandemia com mais de 6 milhões de mortos. O mundo está doente, mas não é só pela guerra que escancara a desumanidade e o poco valor à vida.
O mundo está doente porque, com todo esse panorama, a visão amais impactante não está nas crianças e suas famílias e sim na busca de uma forma de lucrar mais, com o sofrimento dos outros.
Poe muito tempo, o lema do marketing foi “criar dificuldades para vender facilidades”. Nesse caso, em especial, isso é inadmissível.
Quero terminar com as palavras fortes e definitivas que encerram o artigo:
“Nelson Mandela disse uma vez que “não pode haver revelação mais profunda da alma de uma sociedade do que a maneira como ela trata seus filhos”. A comercialização de fórmulas infantis segue a cartilha da comercialização de outros produtos, como tabaco, junk food, bebidas açucaradas e jogos de azar.
É hora de parar de priorizar os lucros corporativos sobre a saúde infantil.
Pare o marketing antiético do leite em pó.
Nossos filhos merecem.
Dr. Moises Chencinski - CRM-SP 36.349 - PEDIATRIA - RQE Nº 37546 / HOMEOPATIA - RQE Nº 37545