Do Portal Papo de Mãe - UOL - Parte 1, Parte 2, Parte 3
Material imenso, pesado mas real, dividido em 3 partes para facilitar a leitura e a "digestão" Riscos à saúde: o pediatra Moises Chencinski critica uma pesquisa de leite em pó feita com recém-nascidos africanos de baixo peso
por Dr. Moises Chencinski - Colunista
13/03/2022
Quando foi publicado meu artigo sobre o “Lobo em pele de cordeiro” (BLOG da Editora Timo), achei que já tinha me indignado o suficiente. Aí, fui pesquisar algo que me incomodava mais ainda: O “novo” (de 2.019) Código de Ética Médica.
E pra que é que eu fui atrás? Já passei da indignação, mas para ser bem cuidadoso, diria que fiquei “prostituto da minha existência” (foi bom pra você?).
E como nada acontece por acaso e nada é tão ruim que não possa piorar, recebi um textão (que nem costumo começar, mas com esse título...) do Luiz Felipe Pondé (A má medicina como ela é) e um artigo opinativo do BMJ - British Medical Journal (“When is the best time to teach medical ethics?” ou “Quando é o melhor momento para ensinar ética médica?”).
São 4 materiais que valem a leitura (sim, o meu também vale rsrs), e que poderiam, cada um deles, compor um livro sobre “mais do mesmo”, visto por focos distintos. Vou tentar não me alongar muito e trazer vocês comigo. Ao final, se tiver valido para uma reflexão... tô bem pago.
Mas aqui, não vou dividir como está na ma´téria da UOL e sim por artigo e depois a Conclusão
Simplificando, sendo direto e sem meias-palavras.
Pesquisadores, entre os quais um deles que declara no estudo ter conflito de interesses com a Danone, propuseram uma experiência, que foi considerada ética pelo Conselho de Revisão Institucional da UCSF, pelo Comitê Nacional de Ética em Saúde da Guiné-Bissau, pelo Comitê de Graus Superiores, Pesquisa e Ética da Universidade Makerere e pelo Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia de Uganda.
O “experimento” seria oferecer uma fórmula infantil da Abbot, que declara que só está vendendo o produto e não participa diretamente do estudo, para um grupo de recém-nascidos africanos (Guiné-Bissau e Uganda) de baixo peso, comparando com o grupo que recebe só leite materno, para comparar os ganhos de peso.
No próprio protocolo do estudo, está descrito, como riscos para o grupo de recém-nascidos que receberá fórmula, possibilidades de “diarreia, doenças infecciosas e interrupção do aleitamento materno” e “maior risco de eventos adversos, hospitalização ou morte em relação aos lactentes do grupo AME” e após algumas explicações absurdas conclui que “não se prevê que os riscos para os participantes do estudo infantil sejam diferentes dos riscos comuns da infância.”
Será que, se fosse dada a oportunidade a essas crianças africanas de opinarem sobre o estudo e suas possíveis consequências, elas optariam por um ganho maior de peso, mesmo que isso custasse sua saúde e até suas vidas?
EMPATIA. Lembra disso?
África é uma realidade distante de nós, não é? Imagine esse estudo aqui, no Brasil. E imagine que seu filho, de baixo peso, estivesse em um grupo que pudesse ser incluído nessa “pesquisa”. Tenta dormir pensando nisso...
Esse “estudo” está passando por sério questionamento mundial sobre sua ética e sua validação, sendo solicitada sua suspensão imediata por vários órgãos e instituições, como a IBFAN.
Em sua versão mais recente, princípios estabelecem questões éticas que justificariam suspender ou nem aprovar esse estudo. Vou citar alguns (tem mais).
Capítulo I - PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS
XXIII - Quando envolvido na produção de conhecimento científico, o médico agirá com isenção, independência, veracidade e honestidade, com vista ao maior benefício para os pacientes e para a sociedade.
XXIV - Sempre que participar de pesquisas envolvendo seres humanos ou qualquer animal, o médico respeitará as normas éticas nacionais, bem como protegerá a vulnerabilidade dos sujeitos da pesquisa.
Capítulo III - RESPONSABILIDADE PROFISSIONAL
É vedado ao médico:
Art. 1º Causar dano ao paciente, por ação ou omissão, caracterizável como imperícia, imprudência ou negligência.
Art. 20. Permitir que interesses pecuniários, políticos, religiosos ou de quaisquer outras ordens, do seu empregador ou superior hierárquico ou do financiador público ou privado da assistência à saúde, interfiram na escolha dos melhores meios de prevenção, diagnóstico ou tratamento disponíveis e cientificamente reconhecidos no interesse da saúde do paciente ou da sociedade.
Capítulo XII - ENSINO E PESQUISA MÉDICA
É vedado ao médico:
Art. 104. Deixar de manter independência profissional e científica em relação a financiadores de pesquisa médica, satisfazendo interesse comercial ou obtendo vantagens pessoais.
Art. 109. Deixar de zelar, quando docente ou autor de publicações científicas, pela veracidade, clareza e imparcialidade das informações apresentadas, bem como deixar de declarar relações com a indústria de medicamentos, órteses, próteses, equipamentos, implantes de qualquer natureza e outras que possam configurar conflitos de interesse, ainda que em potencial.
Em uma análise muito interessante, foram avaliados 4 princípios da Ética Médica:
Não-maleficência: O médico deve tomar decisões que causem o menor dano ao seu paciente.
Autonomia: Direito do paciente de emitir sua opinião, rejeitar ou aceitar o que o médico lhe propõe, de forma livre, voluntária e esclarecida e do médico, de emitir sua opinião, podendo rejeitar solicitações que sejam contrárias à sua consciência e ao seu conhecimento.
Beneficência (diferente de não-maleficência): Praticar o bem para o outro, de acordo com o melhor interesse do paciente (aumentar os benefícios e reduzir o prejuízo).
Justiça: Princípio da equidade como condição essencial da Medicina, com imparcialidade de nortear os atos médicos, impedindo que aspectos discriminatórios interfiram na relação entre médico e paciente.
Precisa desenhar? Se precisar, me avisa. Sou muito paciente para isso.
Normalmente, não termino alguns textos do Luiz Pondé de forma “feliz”. E, dessa vez, ele foi cirúrgico (nenhuma intenção de trocadilho sobre a má medicina como ela é).
Ele traz todo o “glamour” que acompanhava a carreira médica, com seus sacrifícios desde a dificuldade do vestibular, do curso, da dedicação da própria vida em prol do aperfeiçoamento e do paciente.
“Claro que a medicina continua sendo uma grande carreira, cheia de profissionais grandiosos, responsáveis e que salvam vidas, como vimos na pandemia...”
Mas, se aqui ele assopra, a seguir ele morde muito... abordando “a "democratização" das faculdades de medicina inundou o mercado da formação na carreira. Esse fato, por sua vez, inundou o mercado com profissionais medíocres e mal formados.”
E segue: “O que essas faculdades que custam de R$ 10 a 15 mil mensais têm a ver com os escândalos recentes de operadoras de saúde de baixo custo?
De partida, elas indicam que a única seleção nessas faculdades de medicina de ocasião é quem pode pagar essa grana. Nem a qualidade do curso nem a qualidade de quem entra nele importa muito”.
Como deixar esse parágrafo de fora?
“Essa parceria reúne investidores no mercado da saúde, médicos mal formados em busca de carreiras e salários, agências reguladoras e associações de classe de comportamento duvidoso e muito marketing mentiroso - pura redundância. A saúde sempre foi uma área de exploração do grande capital e da grande corrupção, que costumam andar lado a lado.”
E o fechamento deixando essa cicatriz para sempre: “A vida não vale nada em quase nenhuma parte do mundo, apesar do heroísmo de alguns.”
Acho que quem me conhece e com quem eu já partilhei opiniões, sabe desse meu posicionamento.
Aleitamento materno: Durante 10.000 horas-aula, distribuídas em 6 anos de formação médica, são dedicadas 15 horas para falar sobre nutrição. E o aleitamento materno tem uma parte muito pequena nessa área. Isso quer dizer que, entre os alunos que cursam Medicina, quem não for para a área de Pediatria (cerca de 70% deles) nunca mais vai ouvir falar sobre a importância e relevância de um bebê mamar no seio da sua mãe, desde a sala de parto, exclusivo e em livre-demanda até o 6º mês, complementado, a partir daí, com alimentação saudável e equilibrada até 2 anos ou mais.
Nos 3 anos de residência de Pediatria, o tema aleitamento materno, que deveria ser a base e presente em todos os congressos que abordam crianças, em qualquer especialidade, não deve ter mais do que 30 dias de carga horária. E, mesmo assim, um curso específico sobre aleitamento materno não é exigência como o Curso de Reanimação Pediátrica que tem enfoque na reanimação da criança e adolescente, com estabilização na primeira hora do atendimento. Todas as crianças mamam leite materno. Uma parte bem menor das crianças terá necessidade de reanimação.
Mas a reanimação salva vidas. Verdade.
O aleitamento materno salva muito mais.
O curso de reanimação é importante? Sim.
O curso de aleitamento materno também é.
A proposta não é um OU outro. Que tal UM E OUTRO?
E o Curso de Ética Médica? Esse artigo opinativo do BMJ traz uma realidade que é importante ser conhecida por todos. Para o autor, que foi professor da área, “a educação em ética médica precisa de uma grande reformulação. Na minha opinião, há muito ensino de ética médica nos primeiros anos da faculdade de medicina e muito pouco após a qualificação, quando realmente importa.”
Sim, existem aulas de Ética Médica no curso de 6 anos de Medicina. Elas fazem parte da área de Humanidades – Bioética que tem, em média, uma carga horária de 80 horas divididas em 2 semestres. Muito mais do que aleitamento. Mas muito, muito mais.
Mas, seria ótimo se essa aula não fosse dada no 3º e 4º semestres da faculdade (2º ano). Sabe quanto disso, um aluno, após 4 anos, ainda se lembra?
“Sim, mas não me lembro de nada. Nós apenas tivemos que aprender as coisas de cor para o exame. A ética médica só é relevante quando você começa a praticar.”
Quando o aluno chega ao 5º e 6º anos, na sua prática médica de internato, a imensa maioria deles não revê o Código de Ética Médica.
“Ironicamente, quanto mais os alunos se aproximavam da qualificação, menos ensino de ética recebiam.”
E para terminar as citações desse “cutucante” texto:
“O melhor momento para ensinar ética médica é pouco antes da qualificação e, melhor ainda, pós-qualificação, quando os médicos estão na prática e podem aplicar imediatamente o que aprendem ao seu trabalho clínico. Só então a ética médica, livre das amarras dos exames iminentes, ganha vida como uma disciplina relevante e prática.
No entanto, a maioria do ensino de ética médica deve ocorrer após a qualificação, com casos da vida real para ilustrar a aplicação de princípios ou normas éticas à situação concreta.”
Será por isso, que ainda hoje, existe discussão sobre validade e eficácia de vacinas, da importância do aleitamento materno para a saúde materno-infantil, da relevância da educação infantil e do contato das crianças com a natureza para se criarem cidadãos, responsáveis, atualizados, respeitosos e, principalmente, ÉTICOS?
O que pode existir de mais importante do que a vida?
Mas a vida precisa vir num pacote com dignidade, com respeito pelo próximo, com empatia, com justiça, com equidade, com direitos, com responsabilidades, sem preconceitos, sem julgamentos.
Uma vida que valha a pena ser vivida: sem guerras, sem mortes evitáveis, sem humilhações, sem injustiças. UTOPIA do presente? Pode ser. Mas, quando você nasceu, passou pela sua cabeça, ou pela de alguém, que você passaria por tudo o que passou, todos os desafios e superações, e hoje, estaria onde você está e seria quem você é?
Se hoje, você contasse a sua história de vida para alguém, sem contar que é a sua vida, será que não estaríamos diante de mais uma UTOPIA? A do seu passado?
Será?
Dr. Moises Chencinski - CRM-SP 36.349 - PEDIATRIA - RQE Nº 37546 / HOMEOPATIA - RQE Nº 37545