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Amamentação e rede de apoio: especialistas explicam por que essa não é uma tarefa exclusiva da mãe

Do site da Crescer

Você e seu bebê vão precisar de muito apoio, principalmente nos primeiros dias. Profissionais de saúde, familiares e até o Estado também são responsáveis nessa jornada para o sucesso do aleitamento materno. Entenda!

por Vanessa Lima

01/08/2022

Todo mundo pode ajudar a cuidar de um recém-nascido, exceto pela parte da amamentação, já que só a mãe produz o leite. Apesar de comum, essa visão é equivocada. A responsabilidade pelo sucesso do aleitamento materno é compartilhada, assim como os benefícios. As vantagens são bem conhecidas: o leite da mãe é o alimento mais rico para o bebê, contém todos os nutrientes de que ele necessita, não custa nada, não precisa de embalagem, vem na temperatura ideal e está pronto para o consumo.

Parece maravilhoso e simples, não? Mas chegar lá exige esforço, principalmente porque essa mulher acabou de passar por um parto e está cansada como se tivesse corrido três maratonas seguidas. Ou, então, se recuperando de uma grande cirurgia, com os hormônios semienlouquecidos e um pequeno ser humano que ela ainda não conhece direito e depende de cuidados para sobreviver.

O começo do aleitamento materno pode ser confuso mesmo. Mas não é raro ouvir que se trata de um processo natural, instantâneo, quase automático. Acredite: não é. E há muita gente que pode e deve ajudar você. A questão vai além da força de vontade da mãe e do bebê.

O tema da Semana Mundial do Aleitamento Materno 2022, que acontece de 1 a 7 de agosto, tem como foco mostrar que, para que uma mulher consiga amamentar, é preciso uma aldeia, como diria aquele provérbio africano. A frase tem sido repetida quando se fala da criação de filhos, mas uma revolução ainda é necessária para que deixe de ser apenas discurso e vire realidade, em que a sociedade se veja como responsável por todas as crianças. E aqui falamos desde as pessoas mais próximas até as que têm influência macro, como as empresas, a mídia e o poder público, por exemplo. Essa é uma causa que precisa ser abraçada por todos para funcionar de fato. As mães não podem ser as únicas cobradas.

No Brasil, 96,2% das crianças já foram amamentadas pelo menos uma vez na vida, segundo o último Estudo Nacional de Alimentação e Nutrição Infantil (Enani-2019). Esse número vai afunilando com o passar do tempo: só 45,8% dos bebês seguem no aleitamento materno exclusivo até os 6 meses, como recomenda a Organização Mundial da Saúde (OMS).

Mas por que quase metade deixa de ser amamentado se os benefícios, tanto para a saúde materna quanto da criança – a curto, médio e longo prazos – são amplamente comprovados? A resposta tem cinco letras: apoio. Ou, mais precisamente, a falta dele.

“Existe uma fase que chamamos de janela de oportunidade da amamentação, que são as seis primeiras semanas após o parto. Isso quer dizer que esse é o período no qual todos os esforços devem ser realizados para que o aleitamento materno seja estabelecido”, afirma a pediatra Vânia Gato, da Lumos Cultural (SP).

Bem antes do parto
A preocupação com o aleitamento deve começar, na verdade, antes da chegada do bebê, quando a mulher tem o direito de receber orientações de qualidade. Só que isso não reflete a realidade, pelo menos, não para todas. De acordo com um levantamento da Mindminers, empresa brasileira de tecnologia especializada em pesquisa digital, 30% das mães acreditam que faltaram informações para prepará-las para a amamentação.

Ao longo da gravidez, é comum que a gestante monte um plano de parto, faça exercícios, cursos, participe de grupos, converse com especialistas… Só que nem todas dão a mesma ênfase para o aleitamento, o que está relacionado a esse falso senso comum de que é algo natural e instintivo. “Você fica nove meses se preparando para o parto, que vai durar algumas horas, e não tem um preparo adequado a respeito daquilo que pode durar anos”, compara o pediatra Moises Chencinski, colunista da CRESCER, criador e gestor do movimento Eu apoio leite materno.

Alertar essas mulheres de quanto é crucial conhecer mais sobre a amamentação desde a gestação é papel das doulas, do obstetra, das enfermeiras que oferecem cursos e rodas de bate-papo para gestantes e também do pediatra que a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) recomenda visitar por volta da 32ª semana de gravidez. “Quanto antes a mãe começar a entender o processo, melhor”, afirma a consultora Bianca Balassiano, certificada pelo International Board Certified Lactation Consultant (IBCLC). “O ideal é que, ainda na gravidez, ela também converse com uma consultora de amamentação, participe de grupos ou workshops para aprender mais sobre a pega do bebê, os aspectos da mama, o sono, as dificuldades…”, completa.

Saber o que está por vir é o melhor jeito de manter a calma e a confiança. “As orientações, de preferência ainda no pré-natal, aumentam as chances da antecipação na solução de problemas que podem levar ao desmame precoce, como dor e sensação real ou imaginária de baixa produção de leite”, exemplifica a consultora de amamentação Kely Carvalho, fonoaudióloga certificada pelo IBCLC, da Lumos Cultural (SP).

Desafios da estreia
A “hora dourada”, como são chamados os primeiros 60 minutos de vida de um recém-nascido, é fundamental para o aleitamento materno. Colocar o bebê sobre o peito da mãe logo que ele nasce ajuda na transição para o mundo externo, no vínculo e também na amamentação. “É a primeira troca externa de energia entre mãe e filho”, diz o pediatra Moises Chencinski. “O bebê tem um reflexo de sucção, mas não nasce sabendo mamar. Ele será estimulado e vai tentar sugar da forma que consegue. A boca de peixinho, a necessidade de fazer o vácuo, queixo perto do peito, nariz afastado… Todas essas orientações são colocadas em segundo plano naquele momento, quando a emoção assume um papel mais importante”, explica.

Porém, no Brasil, essa não é uma realidade para todas. Também segundo o Enani-2019, só 62,4% dos bebês são amamentados na primeira hora. A taxa de 11% de partos prematuros por ano, de acordo com Chencinski, poderia explicar, em parte, porque alguns deles não mamam ao nascer. “Ainda assim, sobram 26% que não são levados ao seio”, ressalta.

Depois desse primeiro momento, é preciso ter uma assistência adequada, ainda na maternidade, em geral, da equipe de enfermagem, para orientar sobre como deve ser a pega, as posições e uma avaliação da mamada completa para checar se o bebê está se alimentando como esperado. “É inadmissível que um bebê saia do hospital sem ter, pelo menos, uma mamada avaliada do começo ao fim nos dois seios, por um profissional de saúde habilitado e capacitado para isso”, afirma Moises Chencinski. E mais: segundo a enfermeira obstetra Marcela Ganzarolli, da equipe Luvie, de Campinas (SP), “o aleitamento iniciado na maternidade, a partir do nascimento, evita o óbito neonatal e reduz a mortalidade das crianças no primeiro ano de vida”.

"Nem todas as gestantes dão ênfase à amamentação, porque confiam no senso comum de que ela é instintiva"

Vale esclarecer que as principais dificuldades costumam surgir nos primeiros dias. O desconhecimento e a falta de prática aliados ao cansaço das noites insones e ao estresse de toda a novidade tornam esse momento inicial um enorme desafio de adaptação por si só. Depois, há ainda outras questões: “Existem mulheres que, muitas vezes, estão no pós-operatório de uma grande cirurgia abdominal, já que a taxa de cesáreas no Brasil é alta (57%). Algumas podem enfrentar ainda mais adversidades de pegar o bebê e de posicioná-lo na mama — o que não quer dizer, é claro, que quem passou por um parto vaginal esteja isenta de problemas”, diz Marcela.

Por essas e outras, os entraves para se adaptar à amamentação são muitos: “Não raro, a mãe enfrenta fissura, dor, sangramento, o que pode estar relacionado à pega inadequada. A amamentação não deve doer”, lembra Chencinski. “Se tem dor, tem erro, e ele pode ser simples. Às vezes, uma posição ou pega inadequada, às vezes algo como o freio de língua, que é capaz de interferir na mamada”, diz. A anatomia do freio, aliás, que é a membrana que liga a língua ao assoalho da boca, pode, de fato, dificultar a movimentação do músculo e a sucção e, em alguns casos, requer intervenção, o que deve ser avaliado pelo pediatra nos primeiros dias de vida.

A primeira visita pós-parto da consultora de amamentação, caso você conte com uma, também ajuda muito a mãe a entender a etapa inicial e receber dicas valiosas para lidar com os potenciais desafios, até mãe e bebê se conectarem.

"Meu filho nasceu de parto normal durante a madrugada, com desconforto respiratório, e ficou na UTI Neonatal por dois dias. Só pôde ir para o peito depois de quase 20 horas. Uma enfermeira estava me ajudando e, ao perceber que ele não tinha o reflexo de sucção, imediatamente fez um exercício com a língua dele, para estimular. Ela insistiu até ver que o meu filho estava realmente mamando. Depois, me ajudou em todas as mamadas durante esse período. Quando o bebê foi liberado para o quarto, veio com prescrição de fórmula, eu dispensei e expliquei para a enfermeira que queria amamentar. Ela se prontificou a me ajudar e deu certo: meu filho recuperou o peso. Amamento até hoje!” "

Colostro e apojadura
Nos primeiros dias, a mãe produz o colostro, o primeiro leite, que contém uma grande quantidade de anticorpos e protege o recém-nascido contra doenças e infecções. “Ele auxilia, ainda, no amadurecimento do sensível trato gastrointestinal dos bebês”, explica a pediatra Vânia Gato. “O colostro se difere do leite pela quantidade de sólidos totais, proteínas e demais fatores. Com o tempo, essas diferenças diminuem e a secreção se transforma no leite maduro. É tão importante, que costumamos chamar de ‘primeira vacina do bebê’”, diz a especialista.

Então, em cerca de três a cinco dias após o parto, acontece a descida do leite ou apojadura. “Sintomas como calafrio, inchaço nas mamas, sensação de empedramento são comuns nesse período”, lembra a consultora de amamentação Kely Carvalho. “Manter as mamas sustentadas por sutiã ou top de ginástica, amamentar em livre demanda [que é oferecer o seio quantas vezes o bebê desejar] e evitar os bicos artificiais ajudam nessa etapa”, orienta.
Lembre-se ainda: “Um bebê, no primeiro dia de vida, mama 5 ml, que é o que cabe em seu estômago. A digestão disso é muito rápida. Então, vai mamar em intervalos menores. Com a livre demanda, esse período vai aumentando”, diz Moises Chencinski.

Por isso, não caia na cilada de achar que seu leite é fraco. Exceto em casos específicos, apontados por um especialista, ele, sozinho, é o alimento mais adequado para o seu filho. Mantenha a calma e a confiança.

Ajuda coletiva
A dor é o fator apontado por 47% das mães ao falar das dificuldades que tiveram na amamentação, principalmente nos primeiros dias, de acordo com o levantamento da Mindminers. Em seguida, vem a pega errada do bebê, mencionada por 31%, em empate com o vazamento de leite. O que há em comum entre todos esses problemas é que podem ser resolvidos com boa orientação de profissionais de saúde que entendem de amamentação.

Além da equipe de enfermagem e das consultoras, é possível buscar orientações em qualquer um dos 233 bancos de leite humano espalhados pelo Brasil. Os grupos de mães, físicos ou virtuais, também podem funcionar como uma rede de apoio e tanto. Afinal, é possível compartilhar e receber dicas, identificar-se com situações pelas quais outras mulheres já passaram e até fazer amigas, que vão entender exatamente o que você está vivendo. É uma forma de acolhimento e um lembrete de que não é a única a enfrentar dificuldades.

Mas atenção: tenha um olhar crítico sobre o tipo de informação que chega até você. Nem tudo o que lemos ou ouvimos é confiável (fuja das #fakenews). Na dúvida, converse sempre com um especialista sobre o assunto.

"Quando minha filha nasceu, eu e ela fomos para a UTI, por complicações. Depois da alta, voltamos ao hospital, e ela precisou ser internada novamente. Como eu estava debilitada, ela teve de tomar fórmula. Durante esse processo, contei com o apoio do meu marido. Ele me protegia, porque havia uma cobrança grande para que se desse mamadeira e chupeta – e eu sabia que poderia ser prejudicial à amamentação. Ele apoiava o que eu defendia. No início, precisei complementar com leite artificial. Na hora de amamentar, ele buscava nossa filha para ela mamar e ficava de vigília, enquanto eu dormia. Além disso, trocava, dava banho, fazia comida, cuidava da casa… Graças a essa força, pude amamentar minha filha até quando ela quis.”"

Um ombro amigo é uma ajuda mais do que bem-vinda, porque amamentar é exaustivo. Os dias iniciais podem ser mais complicados porque você está sofrendo uma mudança hormonal brusca, enquanto tenta aprender uma habilidade que exige muito da sua cabeça e do seu corpo. Tudo isso com um bebê nos braços, que chora, não dorme como você imaginava e parece querer sugar o tempo todo. “Para passar por isso, a mãe deve estar amparada, com informação e suporte”, reforça Chencinski. Ela precisa também de alguém com quem compartilhe diretamente a responsabilidade de dar continuidade à amamentação. Saber que pode contar com um companheiro ou companheira que buscou se informar, entende as dificuldades, não julga e sabe como ajudar, de fato, faz toda a diferença.

A primeira imagem que muita gente tem em mente quando se fala do papel do pai na amamentação é do homem oferecendo uma mamadeira para o bebê, enquanto a mulher descansa. Isso não só é ineficiente como atrapalha o processo.

O parceiro precisa “colocar a mão na massa”. “Se informar, cuidar dos filhos mais velhos, da casa, oferecer uma água, cortar a comida e levar até a mãe, tentar filtrar as visitas, fazer o ‘plantão noturno’, atendendo às outras necessidades do bebê, como trocar, ninar, acalmar…”, sugere a consultora Bianca Balassiano. Ou seja, ele pode se encarregar de todo o ambiente para que a mãe se sinta mais confortável e descansada para focar no que importa.

Falando da participação do pai, aliás, é impossível desconsiderar que a licença-paternidade de cinco dias corridos não ajuda no processo. Esse período não é suficiente para o homem se vincular direito e compreender a nova dinâmica familiar depois da transformação que é a chegada de um bebê. Está aí um exemplo da função do poder público e coletivo no apoio à amamentação.

Defender um modelo de licença parental mais justa é uma bandeira que precisa ser levantada em uma sociedade que se importa com as famílias, com as crianças e com a amamentação. Mas, enquanto não há uma lei que garanta essa realidade para todos, há empregadores que se antecipam e oferecem possibilidades melhores de licença, embora sejam poucos. Por isso, a iniciativa privada também tem a sua função neste cenário.

E sobre o amparo que a família e os amigos podem oferecer a essa mãe, a consultora Bianca deixa um recado: “Isso quase nunca tem a ver com ficar com o bebê para a mulher descansar, e sim assumir outros cuidados para que a mãe possa cuidar do filho com tranquilidade. Enviar uma compra de mercado, ajudar nas tarefas de casa, preparar uma refeição, levar o filho mais velho para dar um passeio e voltar com ele alimentado e de banho tomado mais tarde são alguns exemplos”, diz ela. Além, claro, de não desencorajar essa mulher com comentários sem base de informação, palpites, dizer, por exemplo, que “o bebê está com fome e é melhor dar uma mamadeira para ele dormir bem”.

Por fim, quando o assunto é apoiar a amamentação, vale considerar um aspecto cultural, ainda mais amplo. “É preciso ensinar o aleitamento materno nas escolas. Não na escola médica, no ensino superior. Para as crianças mesmo”, diz o pediatra Chencinski. “Quando você fala do assunto de maneira lúdica, desde a educação básica, você normaliza a amamentação. É a primeira base e, a partir daí, a mulher não terá que se esconder para amamentar, se ela não quiser. Essa mãe terá o direito de amamentar onde e quantas vezes quiser. E... quando ela quiser”, completa.

Dr. Moises Chencinski - CRM-SP 36.349 - PEDIATRIA - RQE Nº 37546 / HOMEOPATIA - RQE Nº 37545