Do site da Crescer
"Não conheço empresa de qualquer área que seja 'boazinha' e faça, apenas e exclusivamente, pelo social, pelo bem-estar e saúde do próximo. Mas quando isso atinge instituições que 'promovem e atualizam profissionais' da área, há muito risco em jogo", diz Moises Chencinski sobre a conexão entre empresas alimentícias e associações de nutrição
por Dr. Moises Chencinski - colunista
14/12/2022
Olha, gente.
De verdade, eu não queria mais tocar nesse assunto.
Ou melhor, eu preferiria não ser mais provocado e “obrigado” a tocar nesse assunto.
Ele é chato, ele é óbvio, ele é desgastante, ele é surreal, ele é...
Conflito de interesses.
Só na coluna Eu Apoio Leite Materno, da Crescer, eu já falei sobre isso algumas vezes... peraí... desde a minha 1ª matéria.
Amamentar é natural, é simples, é fácil. Só que não!
(7 de maio de 2.021)
“Amamentar requer informação real, ética, cientificamente comprovada, sem conflito de interesses, de acesso fácil, com compreensão simples, buscada e transmitida de forma natural.”
Mas o que me fez voltar a tocar no assunto?
Acaba de ser publicado um documento online pela “Universidade de Cambridge” (22/10/2022), com o objetivo de analisar documentos de 2.014 a 2.020, com denúncias de interações entre a Academia de Nutrição e Dietética (AND) e sua Fundação (ANDF), nos Estados Unidos, com empresas alimentícias, farmacêuticas e agroindustriais.
Os resultados apontaram que os principais líderes da AND e da ANDF ocupam posições-chave em multinacionais (alimentos, farmacêuticas ou agronegócios), recebendo contribuições financeiras dessas empresas.
Os documentos revelam que a AND tem um histórico de “quid pro quos” (tipo “toma lá, dá cá”) com uma variedade de gigantes de alimentos, “possui ações em empresas de alimentos ultraprocessados e recebeu milhões em contribuições de produtores de refrigerantes, doces e alimentos processados ligados ao diabetes, doenças cardíacas, obesidade e outros problemas de saúde”.
Só para esclarecer um pouco mais, falemos de números. A Academia de Nutrição e Dietética aceitou pelo menos US$ 15 milhões de 2011-2017.
Mas essa ação não acontece “apenas” nos produtos, como se isso não fosse grave o suficiente. Sua ação se estende, também, aos profissionais da área. Como assim?
A AND publica o Journal of the Academy of Nutrition and Dietetics, um periódico científico mensal. De acordo com comunicação interna da AND/ANDF, a AND distingue seus “patrocinadores” de seus “apoiadores”. Patrocinadores corporativos “pagam uma taxa e, em troca, a Academia oferece um direito ou benefício”. Os “apoiadores” corporativos fornecem “uma contribuição de caridade sem expectativa (explícita) de retorno comercial”.
E isso chegou a tentativas, algumas com sucesso, de mudanças de padrões de “indicações de nutrientes”, como, por exemplo, a AND chegando a solicitar que o Comitê de Diretrizes Alimentares dos Estados Unidos “reconsiderasse a recomendação de sódio de 2.300 mg/dia (considerada muito baixa)”. Nesse caso não deu certo (ufa), mas os documentos comprovaram a pressão.
Como já é (ou deveria ser) de conhecimento de todos: não existe almoço grátis. A indústria pode ser tão boa, útil e necessária, tão ruim, perigosa e prejudicial. Na real? A indústria visa, principalmente, lucros. Não conheço empresa de qualquer área que seja “boazinha” e faça, apenas e exclusivamente, pelo social, pelo bem-estar e saúde do próximo. Mas quando isso atinge instituições que “promovem e atualizam profissionais” da área, há muito risco em jogo. Associações e sociedades de especialidades, mesmo aqui no Brasil, têm se envolvido em situações que, se não são ilegais, certamente são bem questionáveis do ponto de vista da moral e da ética.
Temos instituições que recebem patrocínios e apoios da indústria para realização de seus cursos, de seus documentos científicos.
Pausa para sua reflexão
Pense nessas só 3 perguntas (que eu já escrevi em outros textos):
- Você participaria de uma carreata pelo trânsito seguro, promovida por uma empresa de bebidas alcoólicas?
- Você iria a uma caminhada contra o câncer realizada por uma empresa de cigarros?
- Você apoiaria uma campanha de uma empresa de fast food para levantar fundos para instituições que trabalham em benefício de crianças e adolescentes com câncer, comprando um produto ultraprocessado, que pode ser responsável por várias doenças, inclusive câncer?
Difícil responder? Não deveria.
Mas essas ações são ilegais? Não. Não há lei que proíba alguma empresa ou alguém de promover uma atividade como essas (caminhada, carreata, manifestação).
Mas essas ações são éticas?
E que moral têm essas instituições e empresas para iludir a população?
Muita gente deve se lembrar desse “slogan”:
Ele rouba, mas faz.
É sobre isso.
Convido a todos a conhecer melhor a NBCAL (Norma Brasileira de Comercialização de Alimentos para Lactentes e Crianças de Primeira Infância, Bicos, Chupetas e Mamadeiras - Lei n° 11.265), que “corresponde a um conjunto de regulamentações sobre a promoção comercial e a rotulagem de alimentos e produtos destinados a recém-nascidos e crianças de até três anos de idade: como leites, papinhas, chupetas e mamadeiras. O objetivo da NBCAL é assegurar o uso apropriado desses produtos de forma que não haja interferência na prática do aleitamento materno” (IBFAN).
Já é um bom começo.
Dr. Moises Chencinski - CRM-SP 36.349 - PEDIATRIA - RQE Nº 37546 / HOMEOPATIA - RQE Nº 37545