Do BLOG da Editora TIMO
por Dr. Moises Chencinski - colunista
21/09/2023
Leis. Resoluções. Ética. Moral. Mas um crachá?
Algumas perguntas para esquentar o papo por aqui, diretamente aos profissionais de saúde.
Você esteve em algum congresso, curso, seminário, jornada na sua área de atuação nos últimos, digamos, 10 anos (para passar do período da pandemia), para aprender, estudar, receber informações atualizadas, úteis, repassar para outros colegas que não puderam ou não quiseram ir ao evento?
E na parte social? Encontrou amigos? Viu e foi visto? Fez seu networking? Saiu um pouco da sua rotina de trabalho, do seu “casulo” e viveu um pouco do mundo não científico?
Ao sair desses eventos, você se sentiu:
- Recompensado? Recebeu informações que podem fazer diferença na sua conduta e beneficiar seus pacientes?
- Em dúvida? O que você conseguiu captar das informações não era “tão novidade assim” ou não se aplicava em grande escala aos seus pacientes, mas a parte social foi interessante?
- Decepcionado? Salas lotadas? Dificuldade de acesso ao local do evento? Sentiu que foi tempo perdido tanto nas informações quanto no social?
- Incomodado? As informações não eram práticas ou mais relacionadas aos “produtos” do que aos pacientes? O marketing das empresas não foi controlado pelos organizadores? Ficou evidente, para você, o conflito de interesses que parece não ser percebido por muitos dos participantes e organizadores do “evento científico”?
Dias atrás, fui impactado por um texto do André Islabão: Nós, os “prescritores”.
Pode ser que sua visão sobre o que foi abordado seja discordante em relação às opiniões pessoais. Tudo bem. Cada um de nós tem o direito democrático de ter suas opiniões pessoais. Afinal, são pessoais.
Mas o tema central, que não pode passar despercebido, é abordado de forma aguda e direta, através de um dos símbolos desses eventos: o CRACHÁ.
“Nada acontece por acaso” ou “Não existe almoço grátis”? Escolhe. Muitos dirão que tanta atenção a um pequeno detalhe é um exagero. Mas é nos detalhes que está “o golpe”.
A indústria é fundamental na nossa evolução e, hoje, até para nossa sobrevivência. Um produto da indústria que não gerar dividendos perde seu sentido no mercado econômico. Para ter lucros, o investimento não é apenas, ou principalmente, no produto, mas é fundamental que ele se venda (mesmo que em breve se torne obsoleto para que novos produtos sejam aperfeiçoados – ou não – e vendidos para que se aumentem... os lucros).
Um exemplo desses produtos?
Patrocinado por uma indústria de substitutos de leite materno, que recebeu agradecimento explícito dos autores, foi publicado um estudo sobre um componente do leite materno, o mio-inositol, um novo açúcar ligado à inteligência, que pode favorecer as crianças que não são amamentadas se incluído nas fórmulas infantis.
Isso pode parecer um benefício para crianças que não são amamentadas e “merecem” o mesmo direito à inteligência que as que recebem o leite materno (verdade). Infelizmente, essa é a estratégia utilizada pelas indústrias para obterem lucros: o marketing subliminar.
Abro um espaço para pontuar:
Subliminar é aquilo que influencia o pensamento, o comportamento e os sentimentos, sem que se perceba: Propaganda subliminar.
Disfarçados atrás de uma ação aparentemente generosa, está a proposta final de... obter mais lucro. Insaciáveis. Mas, não existe um produto único, isolado, que modifique a inteligência do bebê. Ele age no leite materno em conjunto com todos os outros mais de mil componentes (a fórmula não chega a 100). Onde prevalece a amamentação, caem as vendas de fórmulas infantis. E onde se vende mais a fórmula infantil, caem os índices de amamentação. Sem mistério.
Voltando ao CRACHÁ: na legislação
“Sempre fico chocado ao ver médicos estampando crachás de “prescritores” nesses eventos. Segundo a ótica dos congressos médicos – e, portanto, segundo a ótica da indústria farmacêutica que patrocina boa parte deles – a humanidade parece se dividir entre os “prescritores” e os “não prescritores”. Os prescritores seriam aqueles seres abençoados pelo direito de prescrever remédios e gerar lucros indecentes à indústria farmacêutica (...). Me pergunto quando foi que deixamos de ser médicos e viramos meros “prescritores”?”.
Pesado? Exagerado? Mas isso acontece muito, ainda hoje, e não só na área médica.
Em 2.008, a ANVISA, através da RESOLUÇÃO-RDC Nº 96, que “dispõe sobre a propaganda, publicidade, informação e outras práticas cujo objetivo seja a divulgação ou promoção comercial de medicamentos”, regulamenta a relação do marketing da indústria e os profissionais de saúde.
Citando só dois artigos dessa RDC (será que isso é respeitado?):
Art. 4º Não é permitida a propaganda ou publicidade enganosa, abusiva e/ou indireta.
Art. 5º As empresas não podem outorgar, oferecer, prometer ou distribuir brindes, benefícios e vantagens aos profissionais prescritores ou dispensadores, aos que exerçam atividade de venda direta ao consumidor, bem como ao público em geral.
Em 2.015, o Conselho Federal de Medicina recebeu uma consulta sobre o uso do termo PRESCRITOR em crachás, respondida com um parecer (CFM Nº 21/2018):
DA CONSULTA
Justificativa: O médico J.G.A. afirma sentir-se discriminado, diminuído, na condição de médico e utilizado pela indústria, os informando que sou prescritor, reivindico a minha condição de médico.
CONCLUSÃO
O entendimento expansivo da Resolução CFM nº 2.069/2014, a Lei nº 12.842/2013, obriga o uso da palavra MÉDICO(A) em qualquer circunstância que tenha que ser identificado por sua profissão e a RDC nº 96, de 17 de dezembro de 2008, deixa claro em seu artigo 40 que o profissional deve ser identificado por sua profissão no crachá, portanto, nos eventos científicos de qualquer natureza, os profissionais da medicina devem ser identificados como “MÉDICO(A)”.
Os dois próximos parágrafos estão no texto do Islabão, mas tomei a liberdade de inverter a ordem para reforçar a informação.
“Talvez muitas pessoas não percebam a gravidade de aceitarem a troca da identificação de “médicos” para “prescritores”, mas isso representa uma afronta à boa Medicina e um evidente aviltamento da profissão. Para começar, ela reduz a atividade médica ao ato da prescrição, ao mesmo tempo em que dá a entender – erroneamente! – que o médico é nada mais que um dócil preenchedor de receitas a serviço da indústria farmacêutica.”
“Médicos são muito mais que prescritores. (...) O ato da prescrição de medicamentos abrange apenas uma ínfima porção de nossa atividade. Uma porção que recebe muito mais atenção do que deveria e que pode nos distrair de tantas outras coisas importantes que podemos oferecer às pessoas.”
Alertar os profissionais, as Sociedades de classe e os organizadores de eventos científicos a respeito dessas questões é o mínimo.
Começar pelo CRACHÁ? Pode ser.
— Mas, Moises, quase todo mundo faz assim. Continuo achando um exagero.
Para finalizar, gosto muito dessa reflexão:
O errado é errado mesmo que todo mundo esteja fazendo.
O certo é certo mesmo que ninguém esteja fazendo.
[Autor: Desconhecido. Adaptação de trecho do livro "Considerando todas as coisas" de G. K. Chesterton. Pensamento por vezes também atribuído a Santo Agostinho].
Dr. Moises Chencinski - CRM-SP 36.349 - PEDIATRIA - RQE Nº 37546 / HOMEOPATIA - RQE Nº 37545