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"Amamentação é uma questão multifatorial e, para isso, necessita de ações multiprofissionais, visões multirraciais e políticas públicas abrangentes", afirma o pediatra Moises Chencinski sobre a posição feminina no cuidado familiar
por Dr. Moises Chencinski - colunista
04/12/2023
Na semana passada estive, como palestrante e congressista, em um ótimo evento de amamentação, sem conflito de interesses: O 4º Congresso MAME BEM (já com previsão do 5º para 2.024 – já estou com roupa de ir). Muita gente (presencial e online), várias classes profissionais representadas (enfermeiras, fonoaudiólogas, pediatras, nutricionistas, odontopediatras, consultoras de amamentação, entre outras), de todos os estados do Brasil e do exterior.
A preparação para o evento sobre um tema importantíssimo, mas de difícil “digestão”, publicado no The Lancet em fevereiro desse ano, teve muita pesquisa para elaborar e compartilhar as estratégias e a influência do marketing da indústria na amamentação.
Isso acontece, segundo os três documentos (mais de 65 páginas), desde a transformação de sintomas comuns aos lactentes como choro, cólicas, gases, regurgitação, sono irregular (que nós chamamos de “Síndrome do Bebê Normal”) em doenças, até os possíveis “tratamentos” dessas situações com fórmulas específicas para “prevenir ou tratar” esses quadros promovidas pelo marketing, ou com medicamentos de custo elevado, quando somados, para cada uma dessas situações que poderiam ser bem melhor direcionadas pelos profissionais de saúde materno-infantil capacitados para isso.
O leite humano é o padrão-ouro da alimentação infantil e da proteção imunológica, que será aperfeiçoada com as vacinas, na defesa da saúde dos recém-nascidos, lactentes e crianças. E, por conta de situações socioeconômicas, culturais, familiares, ocupacionais, infelizmente, o aleitamento materno, apesar de ser um direito, não é uma possibilidade para todas as mães e bebês, mesmo com informação disponibilizada.
A OMS recomenda a amamentação desde a sala de parto (segundo o ENANI-2019, no Brasil, só acontece em 66% dos casos), exclusivo e em livre demanda até o 6º mês (nossa taxa é de 45,7% com proposta da OMS de 70% até 2.030 – será?), estendido até 2 anos ou mais (o que acontece em 35% dos casos com proposta da OMS de 60% para 2.030). Está bom pra você?
Então o que precisa ou pode ser melhorado ou pelo menos tentado?
Amamentação é uma questão multifatorial e, para isso, necessita de ações multiprofissionais, visões multirraciais e políticas públicas abrangentes.
Como eu já disse aqui uma vez, infelizmente, não existe a bala de prata para a amamentação. Mas, muitas atitudes podem fazer alguma diferença. Ficam aqui duas ideias.
Proposta 1-Evitar, ou pelo menos, reduzir ao bem mínimo mesmo, o uso de chupetas
Já abordamos a chupeta (uso em 43,9% em crianças abaixo de 2 anos – ENANI ainda) em várias situações em nossos textos, mas queria citar duas questões importantes sobre ela.
- Interfere na formação do sistema estomatognático (maxilar, mandíbula, língua, etc)
Faz assim. Observe agora, na sua boca fechada, qual a posição de repouso da sua língua. Tem que estar no céu da boca, encostada nos dentes da frente. Não está? Mesmo? Sugiro uma consulta com seu dentista. Rsrsrs.
Isso é fundamental para que tudo funcione de forma adequada na amamentação, mastigação, deglutição, respiração e fala, só para começar. A língua, esse músculo poderoso, é muito importante também na conformação de todas essas estruturas. Até nos ossos.
Então, pensem em uma chupeta colocada entre ela e o céu da boca, para “acalmar” o bebê, através de uma sucção não nutritiva, que fica por muitoooooooo tempo por aí (durante os sonos e sonecas, quando o bebê chora, está incomodado, tem cólicas, gases e mais), durante dias, semanas, meses e até anos (isso, anos). Dá para se ter uma ideia do estrago e do custo depois com aparelhos ortodônticos, cirurgias corretivas e medicamentos... E isso foi só um resuminho.
- Com chupeta não tem livre-demanda
Lembra dela? Livre demanda? Já falei sobre isso aqui também.
O bebê quer as mamas para mamar, quando tem fome ou sede. Mas não é só nessas horas, não é só com a sucção nutritiva. Do artigo:
“É preciso entender melhor o que é livre demanda: o bebê mama quando, quanto, pelo tempo que ele precisar”.
“A livre demanda se ajusta com o tempo. Cada bebê terá seu tempo para isso. Ele cresce e em determinados momentos tem necessidade de mamar com mais frequência. Ele também pode buscar a mãe e seus seios quando sentir insegurança, quando passar por mudanças em seu desenvolvimento (rolar, se sentar, andar, falar)”.
Mas, se ele está com a chupeta na boca, em grande parte do seu dia, ou, se quando ele tem alguma outra necessidade que não seja mamar ou saciar a sede, ele não pedir (porque está com a chupeta na boca) ... cadê a livre-demanda, né?
Proposta 2-Valorizar o trabalho de cuidado das mães
Cena de uma consulta e que fez parte de nossa apresentação no MAME BEM:
“E durante a consulta a médica pergunta:
- Letícia, você trabalha?
- Fora de casa não, doutora.”
Já, dentro de casa, como exclusividade ou como “2º ou 3º turnos”, ou em uma licença-maternidade ... misericórdia. Precisa mesmo listar? Eu não sei como cabe tudo em um dia (e noite).
Mas, esse trabalho tem algum reconhecimento? Ou a sentença “O que você fez o dia todo” não é a expressão mais utilizada para “definir” uma mãe, ainda mais a que amamenta?
Mas temos falado sobre isso a cada dia mais.
Oficialmente? Mesmo? E ações sobre isso? Temos?
O Brasil é um país que, segundo dados da PNAD contínua do IBGE, do 3º trimestre de 2.022 (a última publicada até agora), mostra:
- 89,6 milhões de mulheres acima de 14 anos.
- 47,9 milhões (dessas mulheres) estavam na força de trabalho.
- 18,3 milhões (43,3% dessas) no trabalho informal, sem direitos trabalhistas.
E aí? Como sugerir, recomendar, exigir dessas mulheres que são, muitas vezes, a principal fonte de renda da família, quando não a única, aleitamento materno exclusivo em livre-demanda até o 6º mês?
Insanidade, insensibilidade, visão curta, burrice, indiferença... Pode escolher.
Dados do IBGE (2.022) mostram que:
- A mulher não ocupada dedicou, em média 24,5 horas semanais a afazeres domésticos e/ou cuidado de pessoas, enquanto o homem não ocupado dedicou apenas 13,4 horas em 2022.
- As mulheres ocupadas dedicaram, em média 6,8 horas a mais que os homens ocupados aos afazeres domésticos e/ou cuidado de pessoas.
Algo mais pode ser feito? Vem comigo para a Argentina - julho de 2.021.
Pela lei argentina, uma mulher precisava comprovar 30 anos de contribuição à previdência para poder se aposentar. O Decreto 475/2021 (17/07/2021) trouxe mudanças importantes e relevantes para 155.000 mulheres com idade entre 60 e 64 anos, na contagem desse tempo, entre as quais:
- As mulheres e/ou gestantes poderão computar UM (1) ano de serviço para cada criança e/ou filha que nasceu vivo.
- No caso de adoção de menores, a adotante computará DOIS (2) anos de serviço para cada filho e/ou filha adotiva.
- Será reconhecido UM (1) ano de serviço adicional para cada filho e/ou filha com deficiência, que nasceu vivo ou que foi adotado e/ou adotado menor.
Resolve? Não.
Mas já é um começo de reconhecimento em lei, oficial, do trabalho de cuidado, que existe de fato. Só não de direito.
Será que nossas autoridades federais já não poderiam começar, ou deveriam ter começado, a se mexer para que esse tipo de atitudes, de leis, de iniciativas visibilizasse essas mulheres?
Por um outro lado ainda, quando se analisa a representatividade:
“Entre 2016 e 2022, o Brasil teve, em média, 52% do eleitorado constituído por mulheres, 33% de candidaturas femininas e15% de eleitas”.
Quer dizer que no Brasil, os homens representam 85% do total de políticos que analisam, definem e propõem leis sobre as questões que envolvem as mulheres.
Relembrando um bordão do humorístico Planeta dos Homens, da década de 1970, o macaco Sócrates, vivido por Orival Pessini, dizia:
Não precisa explicar. Eu só queria entender.
Dr. Moises Chencinski - CRM-SP 36.349 - PEDIATRIA - RQE Nº 37546 / HOMEOPATIA - RQE Nº 37545