Do site da Crescer
O pediatra Moises Chencinski reflete sobre o que realmente não pode faltar para a mãe e para o bebê nesse momento
por Dr. Moises Chencinski - colunista
04/06/2024
Essa é uma pergunta que me deixa desconfortável sempre que eu tento responder, ou preparar um texto ou leio outras respostas e propostas. ´
É importante? Pode ser sim.
É uma questão prática? Não deixa de ser.
É fundamental? Será?
Fico imaginando uma situação em que uma mulher, gestante, que se informa, que tem acesso à internet buscando artigos ... Aí as primeiras informações que aparecem são as patrocinadas, depois as de cada maternidade, algumas se autoproclamando como “lista completa”. Mesmo? Gente, a internet e as necessidades criadas mudam a cada dia (ou hora), porque uma das principais e mais conhecidas estratégias do marketing (sim, sempre ele) é:
“Criar dificuldades para vender facilidades” (já ouviu isso?)
E agora, nesse final de semana, vi essa mesma proposta sobre o que levar para a maternidade de uma indústria de substitutos de leite materno, que capta a “simpatia” das gestantes e de mães em geral, simulando interesse real, quando, na verdade, essa é mais uma estratégia de marketing de mensagem subliminar (já abordei muito esse tema aqui).
Defini que não passaria dessa semana e eu escreveria minha lista sobre “o que levar para a maternidade” que deveria conter itens de custo financeiro ZERO, que fosse viável e disponível para todas as mulheres, que poderia ser preparada durante gravidez e que, ao chegar à maternidade, gerasse equidade, segurança, justiça.
Vou tentar ser mais direto. E não vou conseguir.
“Ancestralidade é o futuro. História é memória”.
Essa foi uma frase que li em um texto de Katiúscia Ribeiro (O futuro é ancestral). Recomendo, logicamente, a leitura.
Ela é a base. É muito mais do que a história. Vai além das gerações. Ela está no princípio. É a partir da nossa ancestralidade, que está sempre em nosso inconsciente, que se manifesta quando não a sufocamos, que mereceria ser mais respeitada, que somos quem podemos e queremos ser. É ela que determina, sem que tenhamos lido a respeito, ou vivenciado todas as situações, as nossas possibilidades de caminhos.
Sabe o tal do déjà-vu, um termo de origem francesa que se traduz por “já visto”, mas que significa muito mais do que isso? É a sensação forte de que já vimos ou até já vivemos uma situação, mesmo tendo a “certeza”, em nosso consciente, de que é a primeira vez que estamos passando por aquela situação?
Mesmo as primigestas (mães que estão gerando pela primeira vez), já têm em sua pele, em seu íntimo, até com receio por não entender de onde vem essa sensação, a ancestralidade do gestar, do parir, do amamentar.
Não enxergo outra possibilidade de começar a “mala” para a maternidade. Aliás, talvez, a ancestralidade seja essa mala. A que carrega tudo dentro dela. E antes de começar a preencher essa mala, segue algo que ficou na minha memória sobre Cura Ancestral (Florescer Bento):
“A minha Espiritualidade me Nutre, mas é a minha Ancestralidade que me Sustenta”.
“Um fruto nunca cai muito longe da árvore (ou do pé)”.
Frase com as duas versões que pode até ter sua origem na Bíblia, mas que eu não sei bem de onde vem.
Aqui, pode ser abordada uma “ancestralidade” mais próxima, mais familiar. Quem trabalha com saúde materno-infantil já ouviu, pelo menos alguma vez, algo parecido com:
- Não adianta tentar parto normal. Minha família vem toda de parto cesárea.
- Aqui em casa, todos amamentaram até mais do que 3 anos.
Então isso é imutável? Não. As condições evoluem e a ciência nunca pode ser desprezada ou não ser levada a sério. Novos estudos, novas descobertas, novas realidades podem trazer um novo desfecho dentro dessa trajetória. Será abordado mais adiante.
Vem da ciência, por exemplo, o dogma:
“Cesárea anterior é indicação de nova cesárea”.
Hoje já se sabe que não é bem assim. Aliás, a maioria das vezes não é mais assim. A Organização Mundial de Saúde recomenda uma taxa de 15% de partos cirúrgicos (cesarianas). E, apesar disso, falando de Brasil, nossas estatísticas, que já chegaram em algumas cidades a mais de 90%, mesmo com uma queda atual significativa, ainda não baixaram dos 50% na maior parte do país.
Então qual o sentido da transgeracionalidade? Ela é fundamental. Ela é o “sangue” que vai ser levado e te leva para a maternidade e é trazido e te traz de volta, às vezes modificado, à sua origem. Mas é a raiz, é o que não te abandona. E é o que você vai transferir para as próximas gerações.
“Cada um de nós compõe a sua história
E cada ser em si carrega o dom de ser capaz
De ser feliz”
Frase da música “Tocando em frente” de Almir Sater e Renato Teixeira
Essa não pode ficar fora da tua mala para a maternidade. Ela te trouxe até aqui. Ela direciona seus passos. Ela vem com você desde o início da sua gestação até os dias de hoje, com as suas marcas, com
Vou me aproveitar aqui do dicionário: HISTÓRIA.
“Sequência de dados relativos a um fato ou indivíduo”.
“Narrativa, geralmente cronológica, de fatos reais ou ficcionais, relacionados a um assunto ou personagem; relato”.
Assim, para onde quer que se vá, se carrega a história na bagagem e tudo o que acontecer nessa “viagem” vai ser acrescentado na mala e pode acrescentar ou modificar essa história.
Sinto que a ancestralidade, a transgeracionalidade e a história não podem ser esquecidas ou menosprezadas durante o período que a mãe vai passar na maternidade.
Talvez esse seja um dos componentes mais “concretos” dessa mala. Não sei se o mais pesado, mas muito, muito necessário e importante. Informações que deveriam ser disponibilizadas desde muito precocemente, na educação infantil, por exemplo, e que só seria ajustada de acordo com o passar do tempo, com a compreensão das crianças e adolescentes, independentemente de recortes de gênero, de raça, de “classes socioeconômicas” e culturais.
E assim como em cada situação na vida, essa informação deveria ser oferecida, principalmente, por quem é da área de saúde materno-infantil e estuda, e se atualiza, e pesquisa sobre o tema, tanto para profissionais quanto para as famílias, em formato atualizado e acessível (textos, posts, mídia social, stories, reels, lives, entre outros).
Dados sobre gestação (como programar, como evitar ou controlar, como cuidar e acompanhar, como proteger), sobre o parto (cuidados para escolha dos locais para nascer, equipe de saúde, tipo de parto, analgesia ou anestesia, clampeamento oportuno de cordão, contato pele a pele) e amamentação (ainda é o padrão-ouro da alimentação infantil, na sala de parto, promovendo com a hora oportuna de cortar o cordão e o contato pele a pele a hora dourada, pega, posição, postura da equipe da maternidade em relação a evitar bicos, chupetas, mamadeiras e substitutos de leite materno, esses a não ser em caso de extrema necessidade, conforma indicação de estudos, recomendações, por exemplo, o documento científico da Sociedade Brasileira de Pediatria).
“É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança”. Provérbio africano dos mais conhecidos e que pode ter sua compreensão ampliada de “educar” para “cuidar” ou “apoiar” e de “uma criança” para a “dupla mãe-bebê”.
“É preciso uma aldeia inteira para apoiar uma dupla mãe-bebê” não seria uma interpretação nem inadequada e nem exagerada.
E quando se fala de aldeia, incluem-se aqui a legislação, a sociedade, os empregos, as famílias, os profissionais, um mundo. Sim, o mundo deveria ser a rede de apoio de uma dupla mãe-bebê para que se possa garantir a sobrevivência do planeta.
E sem sair da cultura africana, também é válido ressaltar a “filosofia” do UBUNTU, com uma de suas reflexões mais significativas: “Eu sou porque nós somos”. Nós só podemos ser com a relação, a conexão, o vínculo, a colaboração, o respeito, a solidariedade do outro.
Sozinhos podemos até tentar. Mas, é sendo parte de uma rede de apoio permanente, com uma troca constante de papéis, que a mala fica quase pronta para se chegar à maternidade. Hoje você protege e apoia. Em outro dia, você, como parte constante dessa rede, passa a ser protegido e apoiado, para conseguir continuar a apoiar e a proteger.
“Nós somos a soma das nossas decisões” é uma frase do personagem interpretado por Woody Allen no filme Crimes e Pecados que ficou na minha cabeça por muito tempo.
Com toda essa trajetória da ancestralidade, transgeracionalidade, com sua história, com informação adequada e rede de apoio, sempre que possível presente, toda escolha sempre deve ser da mãe. Sempre.
E essa escolha de uma mulher capaz, íntegra, deve ser escutada, acolhida, compreendida, aceita, sem julgamentos, sem jogo de interesses, sem pressão dos profissionais ou do marketing ou de quem quer que seja.
Suas dúvidas e seus questionamentos precisam ter abertura e confiança para serem expostos, abordados e, quando possível, esclarecidos. Só assim existe a chance de uma escolha justa.
Essas seriam as sugestões que eu gostaria de fazer chegar a toda mãe para a preparação de sua mala na trajetória para sua maternidade. E que essa mala pudesse trazer o apoio, a proteção e a segurança necessárias e suficientes para que cada uma dessas mães desfrutasse do seu caminho de forma que fizesse diferença para si e para esse mundo.
Cada um desses itens renderia, individualmente, uma matéria inteira. Foi escrito praticamente de uma vez e tenho certeza de que essa mala pode ser preenchida com mais e mais “produtos” como autoconfiança, empoderamento, amor, esperanças, entre outros.
Essa foi só uma proposta para reflexão, sem esquecer das questões materiais que fazem parte de várias listas sugeridas, mas reforçando que a base para uma maternidade respeitosa, que a mala que sustentará a relação mãe-bebê, não pode ser nem imposta e nem ser impostora.
E tenho consciência de que cada mãe, cada mulher, sabe o que realmente importa para ela e para suas crias. Eu me transformo diariamente olhando, escutando e sentindo. E ainda tenho muito a aprender.
Obrigado a vocês por tanto, sempre.
Dr. Moises Chencinski - CRM-SP 36.349 - PEDIATRIA - RQE Nº 37546 / HOMEOPATIA - RQE Nº 37545