Do BLOG da Editora Timo
por Dr. Moises Chencinski - colunista
01/08/2024
Não sei que poder o final de semana tem que me provoca reflexões (mentira, eu “reflexiono” a semana inteira... rsrsrs... mas ponho no papel ou na tela quando dá tempo).
Sempre fico atento às estratégias (proibidas) que a indústria utiliza, através de seu marketing, para trazer a falsa ideia de que seus produtos (fórmulas lácteas comerciais) têm qualquer semelhança com o leite materno em sua composição ou sua função.
Algumas perguntas (para pensar, sem necessidade de respostas imediatas):
- Você compararia ou acharia semelhança entre uma carroça (*Transporte com quatro rodas, puxado por um ou mais cavalos, burros ou bois, utilizado para conduzir pessoas ou carga) e um automóvel (*Veículo terrestre de qualquer tipo, acionado por um motor a explosão, com quatro rodas de pneumáticos, que se destina ao transporte de passageiros ou carga)?
- Ué, mas os dois não têm 4 rodas e são usados para transporte de pessoas?
- E, se pudesse escolher, qual deles seria?
- Afinal a funcionalidade não é a mesma?
- E se você não tivesse escolha ou opção, mas precisasse de um meio de transporte, o que você faria?
- E se tivesse que ficar com a carroça, o automóvel deixaria de ser sua escolha, se pudesse escolher?
- Mas a carroça não é um substituto do automóvel?
Pedindo “ajuda aos universitários” (dicionário):
Substituto
1 Que ou o que exerce as funções de outrem, na sua ausência ou impedimento.
2 Diz-se de ou qualquer substância, artigo etc. que substitui outro semelhante ou que apresenta qualidades ou propriedades análogas às dele.
- Você diria que, com essa definição, a carroça substitui o automóvel e você concluiria que a carroça é melhor ou semelhante ao automóvel?
- E quando se imaginam as funções “semelhantes”, você já pensou no funcionamento de uma carroça no trânsito no que diz respeito à segurança, eficiência, uso do tempo, deterioração, cuidados de manutenção e uso?
Assim, se não tivesse outra forma, você com certeza poderia até usar uma carroça como transporte de gente ou de carga de um lugar a outro. Essa pode ser uma outra forma de transporte, na ausência ou impedimento de um automóvel, mas nunca um substituto com qualidades ou propriedades análogas a ele.
Que fique muito claro que não há aqui qualquer julgamento e sim uma análise objetiva de dois produtos em suas composições e funções e que, dependendo do caso, os dois podem ser utilizados de acordo com suas finalidades. Mas sem qualquer sentido na comparação.
Alguém, de verdade, ainda está em dúvida sobre o que eu estou falando? Qualquer semelhança não é mera coincidência.
Nos estudos e nas atualizações a respeito de nutrição infantil, tenho encontrado algumas informações no mínimo preocupantes e que merecem uma mudança de abordagem para que não se transmitam conceitos inadequados, especialmente aos profissionais de saúde que vão tanto utilizar essa informação quanto transmiti-las orientando outros profissionais que se interessam pelo tema.
Em um documento publicado recentemente por uma instituição, li algumas colocações que representam o que é divulgado a respeito de fórmulas infantis, leite de vaca e sua “comparação” com o leite materno. Vou me limitar a três delas.
“As fórmulas infantis são os produtos que têm sua composição formulada de modo a se aproximar da composição do leite materno”.
“Dessa forma, fórmulas infantis se aproximam do ponto de vista nutricional da composição do LH, tornando-se a primeira opção para substituí-lo na sua impossibilidade”.
“O leite materno é a opção ideal e ele é bastante diferente do leite de outros mamíferos, qualquer estratégia que busque aproximar o perfil nutricional e funcional do leite de vaca daquele observado no leite humano deve ser encorajada”.
Para que se entenda bem o meu questionamento, quero trazer algumas informações que, talvez, muitos não conheçam ou não estejam familiarizados ou não se lembrem a respeito do leite materno e dos outros “leites”.
Não tenho a menor pretensão de trazer aqui uma “aula” ou um “material completo” a respeito da composição dos leites (materno e outros), mas que devem ser suficientes (espero) para pontuar
Na composição geral, total, o leite materno tem mais de mil "ingredientes" já conhecidos, enquanto que o que mais se tenta se "aproximar" dele, não passa de 100.
Proteínas, gorduras e carboidratos são os maiores componentes do leite. Cada um deles tem sua composição sua função e, junto com sua interação, determina suas características.
Quando abordamos os leites dos mamíferos in natura, sem processamento, cada um deles traz, em sua composição, o que é necessário para que uma mãe nutra sua cria da forma mais adequada, de acordo com as necessidades de sua espécie. Por isso se diz que o leite é espécie-específico.
No que diz respeito às proteínas, no leite materno humano, a proporção de caseína (formação dos coágulos de leite coalhados) e proteínas do soro é de 20/80. No leite de vaca e de outros mamíferos ela é invertida (80/20). A indústria, tentando minimizar essa diferença, preparou em 40/60, ainda o dobro da proporção de caseína do leite materno.
Os oligossacarídeos são carboidratos que não são digeridos no leite dos mamíferos, que estabelecem e fazem a manutenção da flora bacteriana intestinal saudável, favorecendo o sistema imunológico, “combatendo” as bactérias que são nocivas e, assim, protegendo contra infecções gastrointestinais.
No leite humano (HMO – Human Milk Oligosaccharides – Oligossacarídeos do Leite Humano) são mais de duzentos estudados e conhecidos. Estudos tentam comprovar qual o leite de mamíferos com mais HMOs. Um deles afirma que o leite de cabra (LC) contém 6 vezes mais oligossacarídeos do que o leite de vaca (LV) ou de ovelha (LO), sendo que dos 14 que eles encontraram, 5 são semelhantes aos do leite materno (que são mais de 200). Para se ter uma ideia de números, comparado ao leite humano (LH):
LC: 60 a 350 mg por litro de leite.
LV: 30 a 60 mg por litro de leite.
LO: 20 a 40 mg por litro de leite.
LM: 5.000 a 20.000 mg por litro de leite.
Vale ressaltar que o estudo foi patrocinado e financiado pela Ausnutria BV, “empresa que evoluiu para uma líder global em fórmulas infantis premium e produtos de nutrição láctea”, que se “concentra no desenvolvimento e produção de fórmulas infantis de alta qualidade e temos orgulho de nossas próprias marcas de fórmulas infantis produzidas a partir de leite de cabra e leite de vaca regular e orgânico”. Será que tem algum conflito de interesses aí?
As fórmulas infantis, que são produtos fabricados pela indústria a partir do leite de vaca ou do leite de cabra, têm os HMO incluídos, artificialmente, na sua elaboração.
HMO estão gerando tanta repercussão, como se isoladamente fizessem grande diferença, que pesquisadores publicaram estudo em que modificam geneticamente plantas (uma “mutante transgênica” da Nicotiana benthamiana) para criar, artificialmente, esses componentes que existem naturalmente no leite humano. E o alarde é para mostrar que esses produtos podem assemelhar as fórmulas ao leite humano. Sabem quantos eles conseguiram criar?
“Demonstramos a capacidade de plantas transformadas de forma estável de produzir dois HMOs que são abundantes no leite materno da maioria das mães”.
Dois HMOs entre os mais de duzentos conhecidos do leite materno.
E isso traz a ideia de “se aproximar” ou “se assemelhar ao leite materno”.
Esse é o momento de identificar responsáveis? Quem são?
Nós. Opa, como assim nós?
Por muito tempo, nós, profissionais de saúde materno-infantil, assumimos que as fórmulas infantis seriam substitutos adequados do leite materno. E, por conta disso, dessa “forma inadequada de expressão” que apareceu do nada (mesmo???), o marketing se apoderou do termo e criou a “Indústria dos Substitutos de Leite Materno”.
Perceberam a sutileza da ação do Marketing se apropriando, de forma sorrateira e subliminar (*Que influencia o pensamento, o comportamento e os sentimentos, sem que se perceba), através de manobras habituais de falso acolhimento, dos sentimentos e das emoções das mães que, por qualquer razão, não podem, não conseguem ou não querem amamentar.
Não nos cabe julgar ou condenar qualquer mãe informada pela sua trajetória e suas decisões na nutrição de suas crias. A decisão deverá (ou deveria) ser dela. Mas da mesma forma que não se pode colocar na “mesma prateleira” uma carroça e um automóvel, mesmo que ambos cumpram a função de transporte, não se pode colocar nem os leites de outros mamíferos, e muito menos as fórmulas infantis, como substitutos do leite materno.
E “dando nome aos bois”, as fórmulas infantis devem passar a ser chamadas pela forma cientificamente apropriada, que já vem sendo adotada mundialmente. Você pode escolher:
Fórmulas lácteas comerciais (FLC) ou, a que eu acho a mais realista e apropriada Produtos lácteos comerciais (PLC).
E já que estamos abordando justiça e adequação de nomenclatura, vale reforçar que leites vegetais não existem. O produto se chama Bebidas à base de vegetais. E elas não substituem leite.
Fórmula infantil, leite de vaca, de cabra, bebidas à base de vegetais são outro tipo de alimentos, com composição e função próprias, que podem ser oferecidos pelas mães a seus filhos, dentro de certos critérios e avaliações, com acompanhamento profissional e suplementações e, juntamente com o restante da alimentação adequada e balanceada, promover crescimento e desenvolvimento saudáveis. Isso vale para toda e qualquer forma de nutrição (vegetariana, vegana, onívora).
Mas, que fique muito claro: nenhum deles substitui o leite materno.
E para que não haja nenhuma dúvida: não está aqui o julgamento de quem é ou não é uma boa mãe ou uma mãe suficientemente boa. Não é pela forma de alimentação de uma criança que se define a “quantidade e a qualidade do amor de mãe”. Aliás, essa "definição"... O que está explicitado nesse texto é a comparação de dois tipos de alimentos.
O leite materno é um alimento vivo, tanto do ponto de vista nutricional quanto imunológico, que se modifica do começo ao final da mamada, do começo ao final do dia, de acordo com o passar do tempo, para oferecer ao lactente tudo aquilo que é necessário em cada fase e cada situação de sua vida, visando seu crescimento e desenvolvimento saudáveis, independentemente de via de parto e de nascer no tempo certo ou antes.
Como isso pode ser reproduzido ou substituído artificialmente ou industrialmente?
E, para concluir de forma bem categórica, e para que não haja mais riscos de qualquer manipulação de informação:
O único substituto do Leite Materno, quando esse não pode ser usado, é o Leite Humano, o que uma mãe tira para doar aos bancos de leite para que seja oferecido a outros bebês que não a sua própria cria.
*Vieram do dicionário.
Dr. Moises Chencinski - CRM-SP 36.349 - PEDIATRIA - RQE Nº 37546 / HOMEOPATIA - RQE Nº 37545