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“Ah, mas meu filho ... e não morreu.”

Do site da Crescer

"Um relato sobre uma vivência sempre será válido e deve ser respeitado como tal. Mas, ela não pode, de forma alguma, ser generalizada como uma regra, gerando um conselho ou uma conduta", diz o pediatra Moises Chencinski

por Dr. Moises Chencinski - colunista

27/09/2024

... não mamou leite materno
... come doces
... usa telas
... não tomou a vacina X


(Complete a sua lista... e em cada uma delas, uma treta diferente e que não muda a opinião de ninguém...)

Essa é uma das frases mais comuns nas redes sociais, sempre que se divulga alguma recomendação da Organização Mundial da Saúde, do Ministério da Saúde, da Sociedade Brasileira de Pediatria ou quando se comenta sobre algum estudo científico importante, baseado em evidências, que traz esclarecimentos e propostas a respeito de saúde materno-infantil. São os chamados sobreviventes (ou negacionistas, ou...)

Quando se trata de aleitamento materno então, cada postagem ou texto, que tem apenas a intenção informativa, parece não “conversar” com algumas mães leitoras e, ao contrário, provoca reações que têm mais relação com a vida de cada uma delas do que propriamente com o tema abordado.

Na sequência, aparecem os relatos de experiências pessoais, de como tudo “deu certo” mesmo sem fazer o que é recomendado, e o quanto todas essas orientações são “desnecessárias”, “impossíveis de se realizar” por motivações particulares ou até traumatizantes, opressivas e julgadoras.

A partir daí, surgem as “teorias” para cada situação em particular, com propostas baseadas em experiências pessoais, desmerecendo os estudos científicos e as pesquisas sérias, gerando mais desinformação que se transmite rapidamente.


Experiência pessoal não é evidência científica

Já usei essa expressão em alguns textos que escrevi, mas acho que vale a pena explicar melhor.

Os estudos científicos têm, como base, uma proposta que pode ser reproduzida por todas (ou grande parte) as pessoas naquela situação e que, após pesquisas, comprovadamente, tiveram a maior parte (não necessariamente 100%) dos resultados muito mais positivos do que neutros ou negativos.

Vale um exemplo que é simples:

A recomendação da OMS é aleitamento materno desde a sala de parto até dois anos ou mais, exclusivo e em livre-demanda até o sexto mês.

Cada parte dessa recomendação tem desdobramentos baseados na ciência. Amamentação na primeira hora de vida, contato pele a pele, introdução alimentar aos 6 meses, importância da amamentação prolongada. Muitos deles estão aqui na minha coluna, no site da Crescer (Eu Apoio Leite Materno. Recomendo a leitura).

Há trabalhos robustos, inclusive de pesquisadores renomados, que constam, por exemplo do site da WABA (World Alliance for Breastfeeding Action), mostrando que, se essas recomendações fossem seguidas, seriam evitadas as mortes de 823 mil crianças no mundo por infecções respiratórias e digestivas, de 22 mil mulheres de câncer de mama e o gasto de 320 bilhões de dólares, POR ANO.

Toda experiência pessoal é válida e deve ser levada em conta. Mas ela é “pessoal” e, mais do que isso, ela é “única”. Em grande parte das vezes pode “dar certo” para uma situação e não funcionar da mesma forma, na mesma casa, com a mesma família, em uma ocasião muito parecida, com as mesmas pessoas participantes (mesma mãe, pai, filho, pets ou outros membros da família).

Quem nunca ouviu a frase:
“Nossa. Mesmo pai e mesma mãe e os dois filhos são tão diferentes. Como isso foi acontecer?”

Dúvida muito comum, mas com uma explicação muito clara e muito lógica. Independentemente de carregar a ancestralidade, a carga genética, a cultura, os hábitos da família, as duas crianças não nascem dos mesmos os pais. Houve toda uma história, uma transformação, experiências de vida, influências socioeconômicas e culturais e outras tantas questões entre o nascimento dos dois filhos que não podemos dizer que a mãe e o pai do primeiro filho são as “mesmas pessoas” (mesmas características) quando nasce o segundo filho.

Muitas estratégias usadas para situações do primeiro filho (sono, alimentação, educação, atividades físicas) não funcionam para o segundo filho e se faz necessária uma reavaliação, uma reestruturação e um redirecionamento das trajetórias. E que fique claro: Não é sobre “certo” ou “errado”, mas sobre tretas diferentes que podem requerer “talentos” e “esquemas” novos e até desconhecidos.

Assim, um relato sobre uma vivência sempre será válido e deve ser respeitado como tal. Mas, ela não pode, de forma alguma, ser generalizada como uma regra, gerando um conselho ou uma conduta. Não há como garantir que essa ação possa ser reproduzida por outras famílias e nem que os resultados serão garantidos e até semelhantes. Mas tem profissionais que fazem esses estudos e essa trajetória pra gente e buscam essa meta. Esses profissionais também merecem ser ouvidos e respeitados.


Para fechar com arte

Wisława Szymborska (nascida Maria Wisława Anna Szymborska; Kórnik, 2 de julho de 1923 — Cracóvia, 1 de fevereiro de 2012) foi uma poeta, escritora crítica literária e tradutora polonesa, ganhadora do Prêmio Nobel de literatura em 1996, pelo conjunto de sua obra. 

Em seu discurso do Nobel, a poeta afirma que valoriza sobretudo as palavras "não sei", pois são elas que possibilitam a abertura para outros modos de ver e de ser.

Em seu livro (Um amor feliz) há um poema (Nada duas vezes) que me chamou a atenção nessas linhas:

“Nada acontece duas vezes
nem acontecerá. Eis nossa sina.
Nascemos sem prática
e morremos sem rotina.

Nem um dia se repete,
não há duas noites iguais,
dois beijos não são idênticos,
nem dois olhares tais quais.”

Dr. Moises Chencinski - CRM-SP 36.349 - PEDIATRIA - RQE Nº 37546 / HOMEOPATIA - RQE Nº 37545